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Folha Gastronômica

Doçaria conventual portuguesa

Os doces em nada lembravam o rigor próprio das regras monásticas

Doçaria conventual portuguesa nasceu nos conventosDoçaria conventual portuguesa nasceu nos conventos - Foto: Greg/FolhaPE

A doçaria portuguesa é considerada, por todos os grandes especialistas, como a melhor do mundo. Pela diversidade. Pelo requinte. E, sobretudo, por seu sabor muito especial. Bolos e doces com nomes que nos fazem lembrar a própria dualidade da alma humana. De um lado, recordações do divino – barrigas de freira, biscoito do Cardeal, bolachas do bom Jesus, bolo divino, bolo do Calvário, bolo de São Vicente, bolo de mel de Santa Helena, celestes de Santarém, creme de Madre Joaquina, delícias de Frei João, hóstia de amêndoa, lampreia de ovos das Clarissas de Coimbra, madalenas do
Convento, manjar-do-céu, mexerico de freira, orelhas do Abade, papos-de-anjo, pastel de Belém e de Santa Clara, pescoço de freira, pudim de ovos dos frades do Convento de Alcobaça, pudim do Abade de Priscos, toucinho-do-céu. E, do outro lado, recordações do profano. Com nome e sabor de pecado – arrufos de sinhá, baba-de-moça, beijos, suspiros, ciúmes, bom-bocado, sonhos de esperança, bolo dos namorados, colchão de noiva, engorda-marido, fatias-de-parida.

Essa doçaria nasceu nos conventos. Daí seu próprio nome – Doçaria Conventual. Por haver, ali, fartura de tudo. Em razão das heranças deixadas por famílias ricas, quase todas com filhas que lá viviam; ou por pecadores, na esperança de merecer redenção para suas almas. Certo é que por conta de tanta opulência, ou pela origem nobre de freiras educadas com o requinte da corte, nesses claustros os doces em nada lembravam o rigor próprio das regras monásticas. No início, usando mel produzido nos próprios conventos. E depois açúcar, trazido pelos árabes à Península Ibérica. Mais gemas de ovo, entregues pelas vinícolas; que desse ovo, no mercado, aproveitava-se só as claras – para purificar vinhos ou engomar roupas. Açúcar e gema passaram a estar presentes em todas as sobremesas; sendo usados, ainda, na fabricação de licores. Junto a esse açúcar, e trazidos pelos mesmos árabes, chegaram também outros ingredientes que, pouco a pouco, foram fazendo parte das receitas de bolos e doces – amêndoa, anis, avelã, canela, cardamomo, cravo, damasco, gengibre, noz-moscada, nozes, passa, pistache, tâmara.

Era quase uma liturgia. Sendo guardadas, nos mosteiros, essas receitas, como segredos de confessionário. Assim foi até o século XVIII, quando começou o declínio das ordens religiosas no país. Em 3 de setembro de 1759, foram expulsos os jesuítas, com a extinção da ordem em 21 de julho de 1773. Pouco mais tarde, em 30 de maio de 1834, o Ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, Joaquim António de Aguiar, promulgou lei que declarava extintos “todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer outras casas das ordens religiosas regulares”. E confiscando o patrimônio de todas essas ordens. Passou, por isso, a ser conhecido como o Mata-Frades.

Para sobreviver, as religiosas começaram a vender doces. “Fruto essencialmente da habilidade, engenho, ociosidade, rivalidade e riqueza de freiras e noviças”, segundo o escritor e crítico gastronômico português José Quitério. E passaram a transmitir as receitas a quem lhes dava acolhida. Passando esses doces conventuais portugueses, de geração em geração. E permanecendo vivos até os dias de hoje. Compreendendo a importância de guardar sabores e tradições, nestas receitas “de pedigree”, como disse mestre Gilberto Freyre. Que têm história. Que têm passado. Porque “numa velha receita de doce há uma vida, uma constância, uma capacidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com a moda”.

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