Nelson Rodrigues e o ex-covarde
As predições do profeta tragicômico apontavam para o que o Brasil se tornaria no depois
Pontualmente, entre janeiro e outubro de 1968, O Globo, do Rio, publicou crônicas de Nelson Rodrigues. Foram reunidas por Ruy Castro, em 1995, e editadas pela Companhia das Letras. Sob o título de A Cabra Vadia. A Cabra Vadia foi uma das figuras inventadas pelo cronista para ilustrar seu planeta mágico. Já se vão cinquenta anos. E o brilho da escrita de Nelson só aumenta. As predições do profeta tragicômico apontavam para o que o Brasil se tornaria no depois.
Um dia, um colega de redação indagou a Nelson:
- Você não escrevia sobre política. Por que é que, agora, você só escreve sobre política? “Sou um ex-covarde”, respondeu o jornalista. E continuou: “Hoje, é difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para nosso aviltamento pessoal. É o medo. Reitores, professores, são fisicamente montados pelos jovens. O medo começa nos lares, passa para a igreja, para as universidades, destas para as redações, e daí para o teatro, o cinema. Fabricamos a Razão da Idade. Por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total. Tive medo. Mas já não os tenho. Sou um ex-covarde. É maravilhoso dizer tudo. Não trapaceio comigo. Nem com os outros.”
Na crônica de 15.01.1968, intitulada Feia Nudez, Nelson escreveu: “Durante séculos, a história preservou o mistério e o suspense do umbigo. Era como se a mulher não o tivesse. Através das idades, só o marido de civil e religioso, ou o parteiro, conseguiam vê-lo. Para os outros, o umbigo era irreal, utópico, absurdo. E, súbito, começam a aparecer, aqui e ali, as praias pré-histórica. Tal como no tempo em que os homens viviam em hordas bestiais. E começamos a época da nudez sem amor, do nu de graça e, repito, sem o pretexto do amor. A nudez exclusiva para o ser amado deixou de existir. Todos se despem para o ser amado e para os outros, inclusive o crioulinho do Grapete.”
Já na crônica de 05.02.1968, com o título de Falsos canalhas, Nelson diz assim: “Um dos momentos mais patéticos de minha infância foi quando ouvi alguém chamar alguém de canalha. Era a primeira vez. Teria eu que idade? Cinco anos, talvez. Ou menos. Vá lá, cinco anos. E me crispei de espanto. Minto: de medo. Não de espanto. Para mim, uma palavra estava nascendo, era o nascimento de uma palavra.
(...). “Falei em solidão e já retifico. O falso canalha é mais solitário do que o verdadeiro. O poder foi, para Roberto Campos, a solidão total. Não houve ninguém tão só, não houve ninguém mais só. Queriam mata-lo. Vi um pau d’água berrando: - Dou um tiro nesse Roberto Campos! Ao mesmo tempo que dizia isso, pendia-lhe do lábio a baba elástica e bovina do homicida”.
Na crônica de 24.05.1958, Nelson escreve sobre a revolução estudantil e, depois, operária, que abalou a França em 68. Disse assim: “Graças ao Dumas, pai, eu e o José Lino Grunewald somos íntimos da Revolução Francesa. Falo da primeira, da autêntica e não da atual. A atual tem um defeito indesculpável: falta-lhe sangue e, repito, o sangue não jorra como a água dos tritões de chafariz. E, como não há marias antonietas, nem cabeças cortadas, o mundo já boceja. Sim, é o tédio antes do Terror (e talvez não haja nem o Terror)”.
(...). “De Gaulle tem a solidão do herói. Sua liderança foi um equívoco que teria de ser desfeito. É herói puro e, ainda mais, com esporas e penacho. Não há francês mais radical. Foi francês quando ninguém era francês. Mas tem o defeito de não ser idiota. Tem que cair, mais cedo ou mais tarde”.