“A Namorada Ideal” revela que o perigo, às vezes, mora dentro de casa
Com atuações afiadas, suspense da Prime Video aposta no desconforto como ferramenta narrativa
É algo comum ver uma história se desenrolar em um ambiente de riqueza inabalável, até que uma tragédia acontece. “A Namorada Ideal” começa como um retrato do conforto, uma casa impecável, uma mãe de sucesso, um filho educado. Mas, como toda boa farsa social, o tempo dirá o que é verdade e o que é mentira. A chegada de Cherry, interpretada por Olivia Cooke (House of the Dragon, Bates Motel), é o estopim para um jogo psicológico que transforma o cotidiano em um campo minado.
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No centro da trama está Laura Sanderson (Robin Wright), uma executiva que vive com o filho universitário, Daniel (Laurie Davidson), em uma casa chique, tudo limpo, controlado e previsível, até a chegada de Cherry (Cooke), a nova namorada do rapaz. O que começa como um encontro casual, se transforma em um jogo de manipulação onde cada gesto, olhar e palavra escondem intenções ambíguas.
Laura vê em Cherry uma ameaça à ordem que construiu. Cherry, por sua vez, enxerga naquela casa o símbolo de um mundo que sempre a rejeitou. A tensão cresce em pequenos gestos, uma xícara de chá servida com frieza, um elogio atravessado, até que o lar perfeito se revela o palco de uma disputa pelo poder de definir o que é amor.
O que Robin Wright faz aqui, tanto como diretora dos primeiros episódios quanto como protagonista, é desconstruir a noção de controle. Sua Laura Sanderson é o tipo de mulher que acredita proteger quando, na verdade, aprisiona. Sua obsessão é polida, envolta em boas intenções, como se cada gesto amoroso viesse com um lembrete silencioso de que nada escapa à sua vigilância. Cooke, por outro lado, dá a Cherry uma malícia perigosa. Ela manipula e se deixa manipular na mesma medida, sempre um passo à frente e, ainda assim, à beira do abismo.
O embate entre as duas é o centro de gravidade da série. Mais do que um duelo de personalidades, o que se vê é uma disputa por narrativa. Quem tem o direito de contar a própria história? A direção de Wright transforma esse confronto em espetáculo, não há explosões, há silêncios; não há vilãs declaradas, apenas mulheres cansadas de se encaixar no papel que esperam delas.
O desconforto que “A Namorada Ideal” provoca não é novo, mas é habilmente remodelado. Há algo de “Garota Exemplar” (2014) na maneira como o roteiro usa o suspense para falar sobre controle e aparência; e há também uma pincelada de “Big Little Lies” (2017) na crítica silenciosa ao universo feminino sufocado por expectativas sociais. No entanto, enquanto essas produções apostam em explosões dramáticas e confissões catárticas, a série da Prime Video prefere deixar o clímax em gotas, lento, elegante e inevitável.
Assim como em “O Talentoso Ripley” (1999), a trama sugere que o verdadeiro suspense está na capacidade das pessoas de sustentar suas próprias máscaras. E talvez o grande mérito de "A Namorada Ideal" seja justamente esse. Provar que o suspense contemporâneo pode ser tão doméstico quanto o barulho do relógio em uma sala decorada.
Visualmente, a série é tão elegante quanto desconfortável. A fotografia destaca o contraste entre o brilho frio do luxo e as sombras da marginalidade. Essa estética gelada reforça a sensação de que o perigo não vem de fora, mas do desejo de manter tudo “em ordem”.
Se há excessos, eles são parte do todo. A série sabe que flerta com o exagero e se aproveita disso, transformando a tensão em teatro íntimo. O texto contém uma ironia amarga no fato de que o suspense não consiste em descobrir um culpado, e sim em entender até onde cada um é capaz de ir para preservar uma mentira confortável.
No fim, "A Namorada Ideal" é menos sobre o que acontece e mais sobre o que se esconde por trás de cada sorriso, cada gesto protetor, cada olhar que dura um segundo a mais do que deveria. É uma história sobre o controle disfarçado de afeto.
*Fernando Martins é jornalista e grande entusiasta de produções televisivas. Criador do Uma Série de Coisas, escreve semanalmente neste espaço. Instagram: @umaseriedecoisas.
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