“Dark”: O estereótipo de Bernadette Woller na série alemã

Bernadette Woller na série "Dark", da Netflix - Reprodução/Netflix

Atenção: esse texto possui spoilers da terceira e última temporada de “Dark”.

A série “Dark” chegou ao fim e, com ela, as respostas para as teorias que muitos de nós especulávamos. Nos episódios finais, vimos que tanto o mundo de Adam quanto o de Eva era fruto de um terceiro mundo, onde o ciclo poderia ser quebrado se Jonas (Louis Hofmann) e a outra Martha (Lisa Vicari) pudessem impedir que os eventos causados pela família do relojoeiro H.G. Tanhaus (Christian Steyer) voltassem a acontecer.

Com a cidade de Winden salva do apocalipse, os dois mundos foram apagados e com ele parte dos personagens que conhecemos deixaram de existir. Na versão original, os sobreviventes foram Torben Woller (o policial cego de um olho), Hannah Kruger, Katharina, Peter Doppler, Regina Tiedemann e Bernadette.  A coluna desta sexta-feira (10) traz reflexão sobre a última citada e que teve pouco destaque na trama.

Cena final de Cena final em "Dark", da Netflix

A personagem Bernadette (Anton Rubtsov) faz pequenas aparições em sete episódios, dos 26 da série. Como mulher trans e profissional do sexo no mundo de Adam, ela atendia clientes em um trailer na beira da estrada, tendo um caso com Peter Doppler. Na segunda temporada, Franziska Doppler fornece hormônios para a terapia de reposição hormonal de Bernadette, já que o pai, que costumava fornecê-los, havia parado de visitá-la.

Na terceira temporada, no mundo de Eva, Bernadette tem sua história ainda mais reduzida. Sendo Benjamin Wöller, fica implícito que naquele universo paralelo ela não havia feito a transição. E só. Tudo indicava que não veríamos mais a personagem, mas positivamente ela faz a última aparição na cena final ao lado de Peter Doppler, com quem nutre um relacionamento público e estável no mundo original. 

Se isolarmos a trajetória da personagem na série, podemos chegar rapidamente à ideia de que sim, na vida real, mulheres transgênero são obrigadas a se prostituir por causa da discriminação social, a taxa de desemprego é ainda maior para aquelas que também são negras. E tudo bem quando a TV mostra o que vemos fora das telas, mas é importante sinalizar que, ao longo dos anos, reforçar esse estereótipo pode normalizar que o único destino para elas são as ruas e a marginalização. 

Ainda vivemos em um mundo onde pessoas trans são marginalizadas e mortas em maior número. No Brasil, o relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) publicado pela Agência Brasil diz que, em 2019, 124 pessoas transgênero, entre homens e mulheres transexuais, transmasculinos e travestis, foram assassinadas no país.

Os dados salientam que desde o início da TV e do cinema, os telespectadores foram ensinados a considerar que a comunidade LGBTQIA+ e negros são os vilões, fonte de piadas e agressões. Como destaca Laverne Cox (indicada ao Emmy por “Orange Is the New Black”) no documentário “Revelação”, da Netflix, segundo um estudo da GLAAD, 80% dos americanos não conhecem pessoalmente alguém que é transgênero. Então sua única fonte de informação acaba vinda da TV. A mesma TV que apresentaram negros e transexuais como psicopatas. Então como não acreditar que essas pessoas são aberrações, certo?

Também de acordo com a GLAAD, diante de 134 episódios de séries em que havia uma personagem transexual como convidada, a profissão mais comum para elas era a de profissional do sexo. “The Flip Wilson Show” (1970), “SOAP” (1977), “The Jeffersons” (1975) e “The Lucy–Desi Comedy Hour” (1957), são alguns exemplos de seriados americanos que usaram personagens transexuais pela ótica da aberração, das piadas e ridicularização ou atreladas a tragédias como morte e uso excessivo de drogas. 

Então se a mídia exibe pessoas negras atacando brancos e transexuais morrendo em todas as tramas televisivas e cinematográficas, a sociedade aprende que isso é o natural. A TV e o cinema tem o poder de ensinar como as pessoas devem reagir diante dessas circunstâncias e até agora a mensagem que prevalece é ter medo e asco. Em “Dark”, o final de Bernadette foi sobreviver. Mais que isso, ela é vista em um jantar descontraído, com amigos e o namorado, dentro de um relacionamento público e saudável.   

A representatividade trans está longe de ser a ideal, embora tenhamos várias produções dando voz a essa comunidade nos últimos anos, isso não significa que é o bastante. Quando as pessoas puderem ser empáticas não só com os personagens, mas com os LGBTQIA+ fora das telas, o mundo começará a ser um lugar com menos discriminação. Afinal de contas, transexuais também são seres humanos e como tais, também merecem um final feliz e trivial, jantando ao redor da mesa com amigos. 

*Fernando começou a assistir a séries de TV e streaming em 2009 e nunca mais parou. Atualmente ele já maratonou mais de 300 produções, totalizando aproximadamente 7 mil episódios. A série mais assistida - a favorita - é 'Grey's Anatomy', à qual ele reassiste com qualquer pessoa que esteja disposta a começar uma maratona. Acesse o Portal, Podcast e redes sociais do Uma Série de Coisas neste link

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