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Censura às artes: é possível no Brasil?

Recentes ações de suposta repressão a eventos e obras artísticas no Brasil esquentaram debate sobre o cerceamento à liberdade cultural no País

Censura nas artesCensura nas artes - Foto: Greg Vieira /Folha de Pernambuco

O Ministério da Cidadania cancelou, no fim de agosto, um edital que havia pré-selecionado séries com temática LGBT a serem exibidas nas TVs públicas. Duas semanas depois, o prefeito do Rio de Janeiro mandou recolher HQ com beijo gay na Bienal do Livro. No Recife, mais recentemente, uma temporada de apresentações do grupo Clowns de Shakespeare, na Caixa Cultural, foi cancelada pela instituição bancária, logo após a sessão de estreia. Essa sequência de casos que ganharam ampla repercussão nacional nos últimos dias reacendeu o debate sobre o cerceamento à liberdade artística no País. Mas, afinal, é possível dizer que existe censura às produções culturais no Brasil?

Para responder à pergunta acima, primeiramente é preciso delimitar o conceito de censura. Para o Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) da Universidade de São Paulo (USP), que estuda o tema desde 2012, a censura visa impedir a circulação de um bem simbólica, como livros, músicas ou filmes, por exemplo. "É um ato que impede determinada obra de chegar ao seu público-alvo. Ele acontece ou repercute no ambiente público, embora atenda a interesses privados, e é sempre político. Por isso, o sentido é autoritário: vem de cima para baixo", esclarece a socióloga Maria Cristina Castilho Costa, professora da Escola de Comunicações e Artes da USP e coordenadora geral do núcleo de estudos.

Levando em conta as características elencadas, a especialista avalia que há sinais de um nítido avanço repressivo no Brasil. "A liberdade de expressão está sendo cada vez mais desrespeitada, em nome da ideologia e dos preconceitos de governantes", afirma a professora. O controle autoritário da expressão artística não é nenhuma novidade por aqui. A perseguição aos artistas e a proibição de obras eram práticas recorrentes no regime militar, de 1964 a 1985, mas também esteve presente em outras épocas. Em 1937, durante o Estado Novo do presidente Getúlio Vargas, livros do escritor Jorge Amado foram queimados em praça pública.

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"Somos um País autoritário e sempre tivemos censura. Até a década de 1980, não havia uma constituição que garantisse a liberdade de expressão. Nós temos uma cultura censório, que é muito difícil de ser apagada", comenta Maria Cristina. A percepção da professora está alinhada aos dados de uma pesquisa divulgada pelo Datafolha em outubro do ano passado. De acordo com o instituto, 23% dos brasileiros aprovavam a censura a veículos de imprensa. "Mesmo não sendo a maioria, a quantidade é substancial e prova que ainda temos muito a percorrer", defende.

HQ com beijo entre personagens masculinos foi alvo de censura do prefeito do Rio, Marcelo Crivella

HQ com beijo entre personagens masculinos foi alvo de censura do prefeito do Rio, Marcelo Crivella - Crédito: Reprodução



A censura que os especialistas apontam atualmente, no entanto, é diferente da praticada durante períodos ditatoriais. "A censura clássica, que existia no século 20, era promovida por um órgão público destinado a isso. Na atualidade, existem outros recursos censórios mais indiretos, como os processos judiciais e a suspensão de financiamentos públicos. Isso faz com que os casos não sejam registrados oficialmente, o que dificulta o levantamento de dados mais concretos sobre o assunto", explica. Até 2017, o Obcom abrigou o Arquivo Miroel Silveira, com mais de seis mil processos de censura prévia no teatro de São Paulo.

No dia 10 de setembro, o coletivo de jornalismo cultural gaúcho Nonada - Jornalismo Travessia lançou o Observatório de Censura à Arte, que checa e cataloga casos recentes de repressão no meio artístico. Tomando como marco inicial o episódio do cancelamento da exposição "Queermuseu", em Porto Alegre, em setembro de 2017, o site mapeou 32 ocorrências semelhantes em diferentes estados brasileiros.

Não é apenas quem produz os conteúdos que sente os efeitos negativos de um ato censório. Toda a cadeia cultural é afetada quando obras artísticas deixam de circular. "Você pode até não gostar de determinada música, pintura ou peça, amas é preciso que isso chegue ao público. Se não for assim, como as pessoas conseguirão formular opiniões sobre a obra? A censura impede o desenvolvimento de formulações estéticas e, portanto, o surgimento de uma massa crítica. A censura é sempre ignorante", opina.

Reações

Embora encontre apoio em determinados grupos sociais, as tentativas mais recentes de cerceamento às artes não passaram ilesas às reações contrárias. O livro "Vingadores: A cruzada das crianças", que Marcello Crivella, determinou que fosse recolhido da Bienal, esgotou não só no evento, mas também em lojas físicas e virtuais. Da mesma maneira, todos os ingressos para a apresentação de "O evangelho segundo Jesus, rainha do céu" foram vendidos em 48 horas, após a peça ser retirada do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), em julho do ano passado.

No caso do cancelamento do espetáculo "Abrazo", na Caixa Cultural do Recife, o grupo potiguar Clowns de Shakespeare recebeu o apoio de movimentos culturais para um protesto. Marcado para este sábado, com concentração na praça do Arsenal, às 15h, o ato culminará com uma apresentação da peça no Teatro Apolo, às 17h, com acesso gratuito.

Espetáculo

Espetáculo "Abrazo", do grupo Clowns de Shakespeare - Crédito: Rafael Telles/Divulgação



A montagem chegou realizar uma sessão no centro cultural, seguida por um debate, no sábado passado. No entanto, a segunda apresentação do dia, assim como as do domingo e da semana seguinte, foi cancelada. A decisão partiu da própria Caixa Econômica, que apontou um suposto descumprimento contratual como motivo. A reportagem solicitou à instituição informações mais específicas sobre a quebra de contrato, mas não obteve essa resposta. Segundo Fernando Yamamoto, fundador do Clowns, o grupo é acusado pelo banco de ferir a cláusula que o obriga a "zelar pela boa imagem dos patrocinadores, não fazendo referências públicas de caráter negativo ou pejorativo".

"Eles alegam terem recebido uma gravação do bate-papo com a plateia e que esse material prova a suspeita. Tentamos dialogar, já que temos a absoluta convicção de que nada do que foi falado pode abrir qualquer brecha para essa alegação. No entanto, não conseguimos sequer ter acesso a uma explicação mais clara sobre o ocorrido", diz Fernando. Na última quinta-feira, o grupo abriu um processo judicial junto à 2ª Vara da Justiça Federal em Pernambuco, apresentando um pedido de tutela antecipada em caráter antecedente.

Dirigida por Marco França, "Abrazo" é livremente inspirado na obra "O livro dos abraços", do escritor uruguaio Eduardo Galeano. Voltado para o público infantil, o espetáculo aborda a temática da repressão e das relações de poder, a partir da jornada de um menino que vive em um país onde os abraços e qualquer outra forma demonstração de afeto são proibidos.

 

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