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CINEMA

Cineasta pernambucano Gabriel Mascaro fala da inspiração familiar de filme premiado em Berlim

Com "O último azul", diretor pernambucano conquistou o Urso de Prata que é o segundo prêmio mais importante do festival

O diretor Gabriel Mascaro O diretor Gabriel Mascaro  - Foto: Tobias Schwarz/AFP

"O futuro é para todos", apregoa a propaganda oficial do governo brasileiro no longa-metragem "O último azul". Mas desde que "todos" contribuam produtivamente para a nação, o que coloca os idosos do país na condição de cidadão de segunda classe, inúteis, uma massa a ser banida para colônias de repouso.

Foi com essa trama singular, ambientada num futuro próximo em algum lugar entre a fantasia e o premonitório, que o novo filme de Gabriel Mascaro conquistou o júri internacional da 75ª edição do Festival de Berlim, encerrado na noite de sábado, de onde saiu com o Grande Prêmio do Júri um galardão abaixo apenas do Urso de Ouro, conferido ao norueguês "Dreams (sex love)".

 

É uma história inusitada, que fala de um Brasil suspenso numa realidade fantástica, onde há muito espaço para a fábula e a fantasia. É um filme sobre contradições políticas, mas também sobre uma potência de vida resume Mascaro, que recebeu seu Urso de Prata da atriz chinesa Fan Bingbing, integrante do colegiado presidido pelo diretor americano Todd Haynes. Um prêmio num festival do porte da Berlinale é um presente muito grande, que abraça um trabalho que envolve muitas pessoas, muitos corações, uma cadeia produtiva que está ali colocando sua alma em jogo.

Com elenco encabeçado por Denise Weinberg e com nomes como Rodrigo Santoro, o ator manauara Adanilo e a cubana Miriam Socarrás, a produção, realizada em parceria com o México, o Chile e a Holanda, também conquistou dois prêmios de júris paralelos: o do prêmio Ecumênico e o dos leitores do jornal Berliner Morgenpost. O diretor pernambucano de 42 anos já havia participado da Berlinale em 2019 com "Amor divino", drama estrelado por Dira Paes que também tinha um pé no distópico: uma escrivã de um cartório desenvolve uma terapia religiosa para reconciliar casais que buscam o divórcio.

"O último azul" é a primeira produção brasileira a competir pelo Urso de Ouro desde 2020, quando "Todos os mortos", de Marco Dutra e Caetano Gotardo, esteve no páreo. O Brasil foi o grande vencedor da Berlinale em 1998, com "Central do Brasil", de Walter Salles, e em 2008, com "Tropa de elite", de José Padilha.

É ótimo perceber que fiz um filme que está conversando com realizadores que admiro muito, e fizeram parte da minha formação como realizador. É confortante saber que vários filmes que ganharam o Urso de Ouro aqui em Berlim me inspiraram profissionalmente lembrou Mascaro, que conquistou a honraria do evento alemão, um dos três mais importantes festivais cinematográficos do mundo junto com Cannes e Veneza, no momento em que as três indicações ao Oscar de "Ainda estou aqui", de Salles, jogam os holofotes sobre a atual safra brasileira. Fico feliz em ver nosso cinema fazendo parte do debate público, da torcida nacional, celebrado em suas diversas formas. Acho ótimo contribuir com isso e aprofundar o enamoramento do Brasil com seu cinema.

A vitória de "O último azul" em Berlim coroa a carreira de um realizador que começou no documentário, com filmes como "Avenida Brasília Formosa" (2010), mas passou a brincar com fórmulas narrativas dos gêneros da ficção. Estes, em geral, são protagonizados por personagens em busca da autorrealização, fora de amarras de uma sociedade burguesa. Como os vaqueiros do mundo dos rodeios do Nordeste de "Boi neon" (2015), que sonham em fazer sucesso na indústria de roupas da região, ou os habitantes de uma pequena comunidade da costa nordestina, açoitada por marés, ventos e desejos íntimos.

'Rebelde contra o Estado'
"O último azul" acompanha o drama de Tereza (Denise Weinberg), operária de uma fábrica de processamento de carne de jacaré num vilarejo do Amazonas que é notificada sobre sua iminente transferência para a colônia de idosos, pois já passou dos 75 anos. Inconformada com o destino que o Estado lhe reserva, ela tenta realizar um velho sonho: voar de avião. Impossibilitada de fazer qualquer transação financeira sem a autorização da filha, Tereza procura alternativas indetectáveis pelo governo, e vai conhecendo uma série de tipos marginalizados pelo caminho, como o barqueiro Cadu (Rodrigo Santoro), que transporta cargas obscuras pelos rios da região. O diretor destaca que o filme conta a história de uma pessoa idosa "que se rebela contra esse Estado que tenta, de alguma maneira, sugerir qual seria o melhor para o seu futuro".

Tereza diz "eu existo, eu desejo, esse corpo idoso ainda sente, pensa e sonha", e não aceita o que escolheram para ela explica o realizador, que desenvolveu o roteiro com o cantor e compositor Tibério Azul. Fizemos um filme muito simples sobre o desejo de sonhar, a partir de uma idosa que se rebela, que mostra pra gente que nunca é tarde para ter uma nova experiência de vida.

O projeto, conta Gabriel Mascaro, nasceu de "um incômodo, mas também de uma inspiração amorosa". Ele conviveu a vida inteira com os avós, que moravam numa casa muito grande e "sempre cheia de gente". Com a morte do avô, a avó, já em seus 80 anos, não se entregou ao luto, à solidão e ao isolamento e passou a pintar quadros.

A iniciativa dela foi um insight, uma inspiração, um apaixonamento pela vida. O filme foi uma forma de expressar, de coração aberto, o que senti quando percebi uma nova força surgindo na minha avó. Mas, claro, na forma de uma fantasia especulativa, muito livre diz o realizador. E procurei fazer olhando para o corpo idoso no presente, desafiando essa noção de nostalgia, como se eles sempre fossem os depositários de uma memória. Não queria fazer um filme sobre a finitude, ou um corpo nostálgico. É sobre um corpo lançado em uma jornada presente, pulsante, onde tudo de novo pode acontecer.

Estética e idade
Denise Weinberg conhecia pouco do cinema de Mascaro, mas se encantou com Tereza.

Eu me identifico particularmente com a rebeldia dela. E a história dela é muito simbólica. O etarismo é uma doença silenciosa, um assunto que precisa ser discutido diz a atriz, uma das fundadoras do Grupo Tapa. Nem acho que "O último azul" seja um filme distópico, como dizem por aí. Isso pode acontecer amanhã.

A atriz culpa o "capitalismo selvagem" e pondera que "muitos idosos que se aposentam ficam tristes, deprimidos, tomam remédio, aí é a reta final. Mas não precisa ser assim".

Santoro diz que o filme de Mascaro "faz pensar sobre a passagem do tempo".

Vou fazer 50 anos este ano e, na minha profissão, é muito importante a estética, a idade. Especialmente para os atores mais jovens, que começam agora, para os quais a beleza está sempre atrelada à juventude. Envelhecer faz parte do processo natural da vida. E o mundo está sempre tentando parar ou frear esse processo, e eu acho isso muito louco reflete o ator. Esse filme dialoga não só com isso, mas também com a importância de valorizar e aceitar o processo da vida. Por que a idade é um limitador? Por que o idoso tem um resto de vida?

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