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De terroristas a patriotas, Hollywood reinventou os muçulmanos no pós-Trump

Atores de origem árabe no Oscar e agências de talentos para essa comunidade são sinais de mudança na indústria

Zeeko Zaki e Missy Peregrym no pôster da série 'FBI'Zeeko Zaki e Missy Peregrym no pôster da série 'FBI' - Foto: IMDb/Divulgação

Quando a atriz palestina-americana Serena Rasoul chegou ao estúdio para gravar uma cena, há algum tempo, foi orientada a cobrir o cabelo com um hijab, o véu islâmico. Pediu mais detalhes. Quis saber, por exemplo, de onde vinha a sua personagem e qual vertente do islã ela seguia --informações, afinal, que determinariam o estilo do hijab.

Ouviu que bastava "parecer muçulmana". Como se só existisse um tipo, e como se alguém pudesse "parecer" seguir uma religião.

Rasoul se frustrou naquele dia. Percebeu que a indústria do entretenimento americana ainda pena para representar minorias. Com isso em mente, ela criou em janeiro a agência Muslim Casting, voltada a muçulmanos atuando nos Estados Unidos. Rasoul já trabalha com centenas de atores. Um de seus talentos deve inclusive estrear numa campanha da empresa de beleza Maybelline.

Depois de décadas de discriminação, árabes e muçulmanos têm lutado por mais espaço no cinema e na televisão americana. É uma luta antiga, só que foi acelerada nos últimos anos pelo atrito com Donald Trump.

O republicano, que presidiu os Estados Unidos de 2017 a 2021, defendeu medidas contra muçulmanos tidas como racistas. Entre elas, o veto à entrada de pessoas vindas de países de maioria islâmica. Criou, com isso, uma sensação de urgência que catalisou esses movimentos.

Os avanços têm sido surpreendentemente velozes, e a indústria parece ter chegado a um importante ponto de inflexão. Em 2017, por exemplo, Mahershala Ali fez história ao ser o primeiro muçulmano a receber um Oscar --no caso dele, o de melhor ator coadjuvante por "Moonlight".

Já em 2021, Riz Ahmed voltou a quebrar um paradigma ao ser o primeiro muçulmano indicado à estatueta de protagonista, por seu trabalho no filme "O Som do Silêncio".

Ahmed participou da produção de um livreto lançado em junho deste ano, mapeando a representação de muçulmanos nas telas e fazendo sugestões de como melhorar esse quadro. O ator também apoiou um estudo que analisou 200 filmes de 2017 a 2019. A pesquisa mostra que só 1,1% dos personagens nos Estados Unidos são muçulmanos. Entre eles, 19% morrem durante o longa.

Mesmo havendo bastante espaço para melhora, a mudança vivida nesses últimos cinco anos não tem precedentes, afirma Evelyn Alsultany. Professora da Universidade do Sul da Califórnia, em Los Angeles, Alsultany é uma das autoridades nesse tema --sobre o qual escreveu, lecionou e aconselhou estúdios em Hollywood.

"Por mais de um século, árabes e muçulmanos foram representados apenas como dançarinas do ventre, xeques ricos e opressores de mulheres", diz. É o caso do clássico "Sheik", de 1921, estrelado por Rodolfo Valentino. É o caso também de

"Aladdin", da série "Homeland" e de tantos outros. Esse fenômeno passou a ser mais visível depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, depois dos quais essa população virou quase um sinônimo de terroristas para o cinema e a TV.

De lá para cá, grupos da sociedade civil pressionaram a indústria para que abandonasse esses estereótipos surrados. Um dos avanços, nesse período, foi a aparição da figura do "muçulmano patriótico", como um contraponto ao terrorista.

Em séries policiais, esse personagem se destaca por --apesar de ser muçulmano-- defender os Estados Unidos. "É uma representação bastante limitadora", diz Alsultany, "porque a mensagem é de que, para ser um bom árabe ou muçulmano, você tem que estar disposto a morrer pelo país".

Além disso, no cinema e na TV, a religião acaba definindo os muçulmanos. Isso não acontece com os cristãos, que têm o luxo de ser seculares nas telas.

O empurrão dado pelo governo Trump, com suas declarações contra árabes e muçulmanos, coincidiu com outras crises no cinema e na televisão. Entre elas, o protesto em andamento desde 2015 contra a escassez de indicações de atores negros ao Oscar. Há também movimentos por mais espaço para as populações asiáticas na indústria. Neste ano, a chinesa Chloé Zhao, do filme "Nomadland", foi a primeira mulher não branca a receber a estatueta de melhor diretora.

"Trump criou tanto ódio nos Estados Unidos que nós nos unimos para elevar as vozes uns dos outros", diz Sue Obeidi. Ela é diretora do escritório do Conselho de Assuntos Públicos de Muçulmanos em Hollywood, criado há dez anos.

Como parte de seu trabalho, Obeidi lê roteiros de antemão, sugere mudanças e se reúne com executivos do cinema e da TV. "Costumo me deparar com bastantes equívocos em relação ao islã, ao papel das mulheres e à questão do hijab", ela diz.

Segundo Obeidi, os prêmios recebidos no Oscar são uma importante vitória. "Quando um ator como Riz Ahmed é reconhecido pelo mainstream, cria oportunidades para outros como ele", afirma. A professora Alsultany expressa uma opinião parecida. "A vitória de Ahmed é vista como uma vitória de toda a comunidade. Ajuda na autoestima, no sentimento de pertencer à nação."

Esse é um tema sobre o qual Ahmed tem falado com frequência, em público. Antes mesmo do estudo e do livreto lançados neste ano, ele discursou em 2017 sobre isso no Parlamento britânico. A fala inspirou um teste que leva o nome do ator.

Como o teste Bechdel, que analisa a representação das mulheres nas telas, o exame Riz Ahmed mede a aparição dos muçulmanos. Não só se eles têm espaço, mas se os personagens não são estereotipados.

Obeidi e Alsultany atualizaram o teste Riz Ahmed no ano passado, incluindo novas perguntas. Por exemplo, o teste delas -- chamado Obeidi-Alsultany -- leva em conta se os personagens muçulmanos têm profundidade e se eles são motivados por algo que não seja só a sua religião.

Isso é importante, diz Obeidi, porque a missão do cinema e da televisão é justamente a de refletir o mundo em que vivemos. São raríssimos os muçulmanos terroristas. Portanto, não deveriam aparecer só nesse papel.

"Não podemos menosprezar o efeito dessas representações. Filmes e séries mudam como as pessoas pensam, como nós tratamos uns aos outros", diz. A população negra dos Estados Unidos sabe disso --foi representada por décadas, afinal, como violenta e preguiçosa.

"Nós abrimos uma fresta na porta, e agora precisamos escancarar isso", diz Obeidi. Isso acontecerá, explica, quando árabes e muçulmanos estiverem representados em todos os setores da indústria. Não só como atores, mas também como roteiristas, produtores e diretores. "Nós queremos mais."

Filmes e séries que erraram e acertaram na representação de árabes e muçulmanos

Erraram

"Aladdin' (1992) A música de abertura desse filme da Disney causou bastante desconforto. Ela dizia que, se alguém não gostar da sua orelha, pode cortar. A canção foi mudada, depois de protestos. Outro ponto problemático é a cena em que Jasmine quase perde a mão por roubar uma maçã no mercado

'Homeland' (2011) É uma das séries mais criticadas, porque árabes e muçulmanos são retratados como uma ameaça aos EUA. Como vingança, artistas contratados para pichar muros no fundo de uma cena escreveram em árabe "'Homeland' é racista". Os produtores não entenderam, e a cena foi ao ar  

Acertaram

'NCIS: Los Angeles' (2009) Um spin-off da série policial "NCIS", esse programa foi bem recebido por incluir personagens muçulmanos sem que a religião determinasse suas ações. Há, por exemplo, a agente especial Fatima Namazi, que usa o véu islâmico --um dos traços de sua personalidade, não o único 

'Ramy' (2019) A série é criada, dirigida e atuada por árabes e muçulmanos. Entre eles, Ramy Youssef e Mahershala Ali. A produção foi elogiada por representar essas populações de maneira complexa, sem que a religião definisse os protagonistas e sem que eles aparecessem como terroristas

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