Documentário de Marcelo Gomes aborda relação entre tempo e trabalho
'Estou me guardando para quando o Carnaval chegar' é centrado no envolvimento entre os moradores de Toritama, no Agreste de Pernambuco, com a produção de jeans
Toritama, no Agreste de Pernambuco, faz parte da memória de infância do diretor Marcelo Gomes (de "Cinemas, aspirinas e urubus", "Era uma vez eu, Verônica" e "Joaquim"). Quando criança costumava acompanhar o pai fiscal de tributos em inspeções na cidade, que ele recorda como um local pacato e rural. Responsável por 20% da produção de jeans do país, o município de agora já não lembra mais o lugar que o cineasta conheceu. Essas mudanças são apresentadas no documentário "Estou me guardando para quando o Carnaval chegar", que estreia amanhã nos cinemas brasileiros.
"No início, não era um desejo que eu fosse um personagem. Depois, dividindo minhas histórias com a equipe, percebi que deveria estar presente para trazer o passado e confrontá-lo com o presente", afirma o diretor, que surge em cena como uma voz narradora. Ele e parte da equipe do filme participam de um debate, após sessão de pré-estreia, que ocorre hoje, às 19h30, no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco (Derby).
O longa-metragem, que esteve na seleção oficial da Mostra Panorama do Festival de Berlim 2019, trata da relação dos moradores de Toritama com a produção de jeans. A maior parte dos entrevistados trabalha em fábricas de fundo de quintal, conhecidas como facções. O ritmo de trabalho é frenético e repetitivo, o que o diretor faz questão de evidenciar em imagens e som. O barulho irritante das máquinas de costura está presente em quase todo o filme, contrastando com o silêncio campestre que as lembranças de Marcelo evocam.
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Apesar de labutarem de domingo a domingo, em jornadas que ultrapassam doze horas por dia, os trabalhadores ouvidos não costumam reclamar. A satisfação de serem seus "próprios patrões" e a utopia de que um dia - com muito esforço - serão ricos é o que move a maioria. Esse microcosmo revela um capitalismo não só feroz, mas também alienante. Nesse sentido, o diretor encontra um estreito diálogo entre o documentário e o momento que o Brasil vive hoje. "Registrei a última faceta do neoliberalismo, que tem a ver como o estimulo à autonomia. Na verdade, as pessoas vivem um processo de auto-escravização. O filme acabou virando um documento existencial sobre a vida, o trabalho e o tempo", aponta.
Próximo do fim, o longa revela a razão do título escolhido. Um dos motivos que levou Marcelo a filmar em Toritama foi a informação de que as pessoas que vivem lá costumam vender seus próprios eletrodomésticos para passarem o Carnaval na praia. Em uma das poucas épocas do ano em que a indústria local para, a cidade fica praticamente vazia. Quase todos os moradores partem para o litoral, deixando de lado o ofício extenuante.
"O Carnaval é o único momento em que eles podem fazer o que querem com o tempo deles. É um espaço tão íntimo que resolvi entregar a câmera nas mãos dos personagens e esperar o resultado. O material que recebi foi maravilhoso. Há cenas lindas, melhores do que eu imaginava", revela.