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E o samba deu um salto...

Revista-selo gaúcha relança “Os afro-sambas”,disco de Vinicius de Moraes e Baden Powell gravado ao vivo em janeiro de 1966

Thiago MartinsThiago Martins - Foto: Reprodução/Divulgação

 

“Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia, e em última instância para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar, dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro-brasileiro, dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal.”

O texto do poeta Vinicius de Moraes para a contracapa do LP sintetiza tudo o que ele e o violonista Baden Powell se haviam proposto em “Os afro-sambas”: dar uma sacudida naquela música brasileira que tinha ficado mais branca e comportada com o advento da bossa nova.

Gravado ao vivo entre os dias 3 e 6 de janeiro de 1966, num estúdio no porão de um prédio no Centro, alagado pelas chuvas torrenciais que tinham castigado o Rio de Janeiro pouco antes, o álbum atravessou décadas e reviravoltas na MPB, mas sua mensagem continua a ser escutada por músicos mais jovens até que o LP.

Eles são parte de um contingente de ouvintes que aguarda, para a segunda quinzena de novembro, a primeira reedição em vinil dos “Afro-sambas”, a ser feita pelo Noize Record Club, uma revista-selo de Porto Alegre.

“Naquele disco, o Baden inaugurou um estilo de violão mais modal, usando riffs nos espaços dos acordes. Isso tem uma força pop, de comunicação, graças ao poder mântrico do ritmo”, explica um grande apreciador dos “Afro-sambas”: o cantor e compositor Rodrigo Campos, sensação da nova cena da MPB paulista com o disco “Bahia fantástica” (de 2012).

“Já o Vinicius pegava aquela referência do candomblé, que era de certa forma distante para ele, e escrevia de uma forma aberta, com metáforas sobre o amor e a existência. Ele transformou os orixás em algo poético e universal”.

“Esse disco é um divisor de águas do violão brasileiro. Baden se aproximou das raízes negras da música brasileira e tocou de uma maneira vigorosa, mas com um rigor nunca antes visto”, analisa o bandolinista Hamilton de Holanda, que se inspirou nos “Afro-sambas” para realizar o disco e show “Bossa negra” (2014), ao lado do cantor Diogo Nogueira.

Saxofonista, compositor, arranjador e um dos grandes renovadores da música da Bahia (e do Brasil) com a Orkestra Rumpilezz, Letieres Leite diz que a incontestável contribuição de “Os afro-sambas” para a MPB é a divulgação da música africana ligada à religião, “principalmente, por conectá-la com o ambiente da bossa nova, em evidência na época”. 

“Aquele é um disco essencial pelo seu conteúdo, não tanto na conexão fidedigna com os toques sagrados, mas muito mais por aproximar-se dos arquétipos dos orixás nas letras e por expor as informações estéticas de matriz africana para o centro da música brasileira, para todos”, discorre Letieres.

E a influência dos “Afro-sambas” chega até a Abayomy Afrobeat Orquestra, grupo carioca que busca aclimatar no Brasil a revolução do afrobeat: mistura de funk, jazz e música tradicional africana gestada na Nigéria, nos anos 1970, pelo saxofonista Fela Kuti. Para Alexandre Garnizé, percussionista e um dos idealizadores da Abayomy, o disco de Baden e Vinicius é uma referência tanto de poesia quanto da diáspora às avessas, “que é quando você vai buscar as suas origens”: “Acho que, sendo relançado agora, esse trabalho garante ainda mais a visibilidade das raízes africanas, sejam elas bantus, haussás, igbos e iorubás. A mãe é a mesma, e continua a amamentar o mundo inteiro”.

Prestes a lançar “Canto de Marajó”, disco que bebe nas águas dos “Afro-sambas”, o cantor e compositor carioca Alvaro Lancellotti pede uma especial atenção para as melodias simples, de inspiração africana, do LP de 1966. “Passei muito tempo da minha adolescência no baile funk do Chapéu Mangueira. É fácil entender hoje como o funk saiu do miami bass e foi parar no maculelê”, diz ele, que é grande apreciador também da regravação do repertório dos “Afro-sambas” feita em CD por Baden Powell em 1990 (ou seja, dez anos após a morte de Vinicius). “O disco original é meio tosco, na regravação o violão chega mais limpo”.

O disco de Baden Powell e Vinicius de Moraes é o primeiro relançamento histórico do Noize Record Club, um sistema de assinatura que já editou com exclusividade, para seus sócios, LPs do grupo gaúcho Apanhador Só, da Banda do Mar (de Marcelo Camelo, Mallu Magalhães e Fred Ferreira), de Curumin, Otto e Tulipa Ruiz.

Além dos LPs produzidos em tiragens limitadas (serão 1,5 mil cópias do “Afro-sambas”, algumas das quais para venda avulsa), os assinantes recebem em sua casa um kit com uma edição especial da revista “Noize” impressa, direcionada à temática do disco lançado. Em conjunto, as famílias de Vinicius de Moraes e de Baden Powell (morto em 2000) fizeram o convite aos gaúchos para reeditar o trabalho em LP.

“Esse é um dos discos emblemáticos da música brasileira, algo novo que veio do encontro entre Vinicius e Baden. Eles estavam à frente da bossa nova”, diz Georgiana de Moraes, filha de Vinicius. “E é um disco que tem despertado uma curiosidade muito grande entre o pessoal mais novo. Júlia e João Pedro (sobrinhos de Georgiana, netos de Vinicius) sempre me falam dele. E tem uma versão do “Canto de Ossanha” de um grupo novo de rock, Os Dentes, que é muito boa”.

 

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