Entre Cuba e o Recife, a arte de David Alfonso Suárez
Artista gráfico, pintor e ilustrador cubano planeja primeira mostra individual e comenta suas inspirações para criar
Havana e Recife têm em comum o artista, ilustrador e designer David Alfonso Suárez, 36 anos. Há nove anos residindo no Nordeste, o cubano encontrou aqui muito com o que se identificar, principalmente as mulheres de traços fortes, valentes, que ele adora retratar em suas marcantes pinturas figurativas, coloridas, em acrílico sobre papel, cheias de influências de elementos latino-americanos e artistas idem, como Frida Kahlo. Seus corações saltam do peito para exprimir as emoções, ou os corpos encaixados em prateleiras e transpassados por plantas que dão aquele toque de surrealismo.
Mas nenhuma mulher é tão marcante na vida e na obra de David quanto a argentina Tamara Bunke, mais conhecida como Tania a Guerrilheira, única mulher combatente do grupo que Ernesto Che Guevera liderou na Bolívia, em 1967. Pela sua importância histórica, ela foi retratada pelo artista a partir da técnica de pontilhismo, em uma série, e ganha espaço em seu apartamento-ateliê, em retratos e outras pinturas.
Em Cuba, David se formou em design gráfico mas nunca fez nada comercial. Seu País não produz pensando no mercado, apenas propaganda política e para campanhas de saúde, educação, cinema ou teatro. Pode-se dizer, portanto que, mesmo no design, a arte sempre predominou em seu trabalho. Tanto é que já ganhou alguns prêmios significativos, como o "Tocororo", no 2º Festival Internacional de Comunicação de Bem Público de Havana; Prêmio da Oficina Nacional de Diseño (ONDI), em 2004 e 2016; e Prêmio Nacional de Ilustração La Rosa Blanca, na Feira Internacional do Livro de Havana, considerado o maior prêmio editorial para os ilustradores cubanos.
O público pernambucano pode não estar associando o nome à obra, mas os traços de David já ocuparam as avenidas mais movimentadas do Recife e de Garanhuns. É que o artista assinou o projeto cenográfico de três edições seguidas do festival de inverno da cidade agrestina, tendo sido a última em 2015, e também pôs as mãos no projeto cênico do Carnaval do Recife, ao lado de Joana Lira, em 2014, 2015 e 2016. Em Havana, ele já realizou uma exposição individual, em 1998, e promete para o fim deste ano uma mostra só sua por aqui. Enquanto esse dia não chega, a Folha de Pernambuco apresenta um pouco mais do artista.
Entrevista David Alfonso Suárez
Como você veio parar no Brasil?
David - Vim dar aula em Fortaleza em 2007, depois conheci o Recife e me apaixonei pela cultura popular. Fisicamente achei o recifense parecido com o cubano; as pessoas são solidárias. A comida também é semelhante, com exceção da indígena, pois os índios foram dizimados de Cuba. Acabei ficando por aqui, casei com uma recifense e trabalhei no antigo Estúdio Zero (atual Estampa Banana), e depois entrei em uma agência de publicidade. Nesse tempo, pintava como hobby, e aí (o arquiteto) Carlos Augusto Lira conheceu meu trabalho e me convidou para fazer o projeto cenográfico (do FIG) de Garanhuns, em 2013. No ano seguinte, passei a fazer o Carnaval ao lado de Joana. Foi aí que percebi que não dava mais para conciliar com o trabalho na agência de publicidade. Atualmente, sou freelancer. Já tenho bastante material para uma individual. Só não decidi ainda o lugar.
Enquanto esse dia não chega, como fazer para conferir sua obra e obtê-la?
David - Comercializo gravuras em um site chamado Spot Art (www.spotart.com.br), que disponibiliza também originais e gravuras de outros artistas locais como Samico, Abelardo da Hora... Há nomes consagrados e novos.
Você costuma retratar figuras humanas que vêm acompanhadas de diversos elementos. Existe um significado ritualístico por trás desses objetos?
David - Sim. E tem a ver com algo autobiográfico, pois acredito que alguém que vai morar em outro lugar carrega consigo uma bagagem. Gosto de representar as mulheres porque em Cuba temos muita relação com a mulher guerreira, que lutou pela libertação. São mulheres que não são princesas, mas camponesas. Também sou muito influenciado pela música latino-americana. Tiro muita coisa das letras de Violeta Parra e misturo com elementos do Candomblé. As simbologias são muito poderosas. O sincretismo em Cuba é muito grande; não existe a ruptura que há aqui.
Você tem religião?
David - Não, mas acredito em muita coisa. Acho que vivemos de rituais. Tenho grande preocupação em saber de onde viemos e para onde vamos, e acho que nesse caminho acabamos perdendo o foco do que é importante.
Ao mesmo tempo também tem o oposto, o homem, o cosmonauta (astronauta para os americanos), que aparece entre pessoas do povo...Você gosta de fazer esses contrapontos?
David - Acho que a pessoa é um todo com sentimentos contraditórios. O cangaço, por exemplo, é bom e ruim, assim como o ser humano. É uma forma de me expressar. O cosmonauta é algo autobiográfico. Eu sou alguém de fora que, quando dei por mim, já estava aqui.
Você utiliza muitos elementos da América Latina em sua obra. Já conheceu muitos países?
David - Gosto muito de pesquisar danças tradicionais do continente. Na Bolívia, em Oruro, existe um Carnaval muito tradicional. Já o Carimbó e o Reisado daqui são muito semelhantes a outras manifestações folclóricas de outros países. Não que eu tenha conhecido muitos. Fui apenas ao Equador, Paraguai e Argentina. Mas se eu quiser ir a qualquer lugar, basta acessar o Youtube (risos).
Quais são os artistas ou movimentos locais que você admira?
David - Lula Cardoso Ayres, Samico, a literatura de cordel, o Movimento Armorial... De Cuba, gosto de Kcho (apelido de Alexis Leyva Machado, artista conhecido por se inspirar nos barcos cubanos apinhados de gente em fuga do regime cubano) e (Roberto) Fabelo (uma de suas obras famosas chama-se "Sobreviventes", e consiste em uma dezena de esculturas gigantescas de baratas com rostos humanos).
É mais fácil ser artista em Cuba?
David - Sim, lá há problemas econômicos em consequência do embargo imposto pelos norte-americanos, mas ninguém mora na rua ou passa fome, e todo mundo ganha subsídio do governo para terminar os estudos sem precisar trabalhar. Meus amigos brasileiros que vão pra lá reclamam que muitos meninos ficam na rua pedindo sabonete e coisas do tipo. Mas não se vê miséria. Há incentivo para esporte, educação, arte, música... Existem museus que não vejo por aqui: Museu do Rum, do Chocolate, do Charuto... Só falta dinheiro. Tanto é que atualmente alguns estudantes já estão optando por trabalhar enquanto estudam.
Como ser pintor e daltônico?
David - Sempre consegui arrumar um jeito de ninguém perceber isso. Mas tinha muito medo do laranja e do marrom ficarem verdes. Posso errar e esverdear o rosto de alguém (risos). Assim como aconteceu nos tempos do Fauvismo (em que céus aparecem amarelos, árvores vermelhas, e pessoas com rosto pintado de verde).
Che Guevara é unanimidade em Cuba?
David - Sim. Todo cubano tem uma gravura de Che em casa. Podemos divergir com relação a Fidel, mas não sobre Che.