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Literatura

Entrevista: Fernando Baldraia comenta os desafios na edição de diversidade na Cia das Letras

Grupo editoral quer ampliar as vozes no quadro de funcionários e nas publicações com novo comitê

Fernando Baldraia, novo editor de diversidade da Cia das LetrasFernando Baldraia, novo editor de diversidade da Cia das Letras - Foto: Arquivo pessoal

A literatura brasileira é, essencialmente, branca e masculina. Na semana passada, a Companhia das Letras, um dos maiores grupos editoriais do País, anunciou uma série de ações para pluralizar suas publicações e quadro interno de funcionários. O nome escolhido para comandar esse projeto de diversidade foi Fernando Baldraia, doutor em História pela Universidade Livre de Berlim, com pós-doutorado pela mesma universidade no Mecila/Cebrap, que ocupará o cargo de editor de diversidade na editora. Em entrevista à Folha de Pernambuco, ele comentou os desafios de tornar a cultura literária menos desigual, mais pluralizada e representativa de um Brasil real.

 

Folha de Pernambuco - Como surgiu o convite e como você encara o desafio de comandar um setor que pretende mudar toda a estrutura de um dos maiores grupos (se não o maior) editoriais do País?

Fernando Baldraia - A minha contratação e a contratação dos outros dois editores convidados, e a série de publicações que a gente vai produzir agora, obviamente, é uma coisa muito pequena diante do resultado de quase 400 anos de escravidão, de genocídio da população indígena e que recebe não inclusão em várias camadas na sociedade. Por outro lado, não dá para ser super otimista, mas é um passo que está sendo dado e vai se demandar um trabalho enorme. Quando você é, efetivamente, uma pessoa que representa uma minoria que vai ocupar espaços elitizados há todo um trabalho de comprometimento, de sensibilização e buscar fazer entender e os motivos de se fazer ali e como fazer ali, porque esses projetos surgem de propósitos. Sou um acadêmico de carreira, não de construir uma carreira em cima disso, e recebi o convite da própria Lilia (Schwarcz).

FP - Já estão previstas publicações de autores e autoras que perpassam por temas relacionados à identidade racial e de gênero. Isso rompe com uma hegemonia da branquitude neste mercado ou não há rompimento?

FB - Eu acho que não rompe. Com a hegemonia da branquitude, definitivamente, não rompe. Estamos fazendo um censo das obras e censo dos funcionários, mas estamos esperando resultados muito ruins. Quantos autores negros vão estar entre as milhares de publicações do catálogo da Companhia das Letras? 3%? 5%? A gente não vai chegar a dois dígitos, no máximo, a 7 ou 8%, e vamos estar no céu. O que é ridículo você comemorar no Brasil, um país plural, ter 7% de autores negros numa editora do porte da Companhia. Então, não rompe a hegemonia. A hegemonia também é cultural e simbólica, com trabalho, luta e violência também. O que vamos aproveitar agora é uma conjuntura e, de certa forma, estamos colhendo os frutos de pessoas que lutaram antes. Publicar esses autores, abrir um pouco dessa hegemonia, é plantar esses frutos que podem ser colhidos nas próximas décadas. Mas romper essa hegemonia vai ser difícil. Considerando que temos uma população negra, afro-brasileira e indígena, e se encontrarmos ressonância dessas vozes, talvez nas próximas gerações, teremos essa pluralidade.

FP - Dentro dessa conjuntura, há espaço para a pluralidade de vozes que não estão no Centro-Sul do País?


FB - Essa é uma das prioridades, na verdade. Já se tem planos concretos como a gente precisa entender e como atendemos essas diversidades regionais. Temos pensado principalmente educação. Eu tive um papo com o pessoal do departamento da educação. Que tipo de educação você conta às crianças na escola? Que tipos de mito e histórias de regiões são contadas a elas? Que tipo e leitura dissemina? Então, essa parte da educação já tem a Cia das Letras atenta. Sentei com eles para conversar e é fundamental. Esse foco no sudeste brasileiro ajuda a disseminar o racismo, não só o racismo regional, que vai discriminar pessoas de outras regiões, mas também de estereótipos no racismo mais comum. De pensar no Brasil como grande, a literatura precisa conversar com isso tudo. O departamento de educação e literatura infantil tem uma discussão mais madura em relação a isso.

FP - Como podemos criar, além da pluralização de vozes na escrita, uma cultura literária mais democrática e transformadora?

FB - O que já existe dentro na Cia das Letras são os clubes de leitura e o trabalho de divulgação que a Companhia vai fazer junto às escolas. Obviamente, mas ainda isso é pouco. Você tem problemas para além do que uma editora pode fazer. Não tenho como a missão e uma discrepância no acesso à leitura. Podemos dizer leitura. Condições de ler, qualidade para e um canto pra ler. Há um grau de dificuldade até em dinheiro, que é o mínimo pra comprar livro. O problema é muito colossal. Então, para além dos clubes de leitura, acredito que seja o diálogo com organizações da sociedade civil. Talvez seja um mito essa coisa de que as pessoas não gostam de leitura. Eu sou capoeirista e posso observar que desde o pós-abolição há uma discussão sobre o negro nas escolas. Na capoeira, tem um trecho que diz assim: "ê tamo na escola, camará. oiá aprendendo a lê – ê, aprendendo a lê, camará".

FP -Como você encara esse projeto em meio a uma onda de negacionismo e um descrédito por parte do Governo em relação à ciência, intelectualidade e a literatura?

FB - Acredito que essa iniciativa (comitê de diversidade) e outros espaços que têm o objetivo de construir um espaço democrático são respostas a essa política negacionista.   Ela em si é uma resposta para o lugar que a gente está indo, às políticas de estado que têm sido implantadas, com todo esse debate da “escola sem partido” e o que chamam de ideologia de gênero,  que na verdade são falácias mesmo. É uma resposta à conjuntura política atual e o que a gente está querendo fazer tem desdobramentos políticos para além de questões partidárias. É uma iniciativa que visa um país menos desigual e indecente, porque  o Brasil beira à indecência. 

FP - Por que geralmente os escritores negros mais vendidos no País são os estrangeiros?

FB - O que você falou realmente é um de fato, mas eu gostaria de pontuar. Por que Chimamanda chega antes no mainstream que a Carolina Maria de Jesus? Alguma coisa aí está errada. Esse ponto é importante de se pensar, porque tem uma geopolítica que faz desses autores de potências mundiais e falantes de inglês chegarem aqui antes dos brasileiros. mas eu acho importante se pensar na política de aliança. É algo de entender o Brasil no debate na luta antirracista, não só para os negros, mas também um espaço de aliados. Por isso o movimento Black Lives Matter traz um movimento antirracista que transcende o nacional. É bom Chimamanda, é bom Krenak chegar e a gente pensar em frutificar essas alianças e fortalecer todo mundo. 

FP: Então, chegou a hora de integrar também os países africanos lusófonos, a exemplo de Angola, Moçambique e Cabo Verde, nesse debate?

FB: Eu concordo, inclusive, já antes de vir para a Companhia Das Letras comprei coisas interessantes de São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique. Se fala muito em se criar diálogos do Sul com o Sul global e também da gente recuperar um pouco do que perdemos aí. O que você aponta é fundamental e a gente perde muito em não estabelecer um diálogo com os países africanos, principalmente, com os lusófonos por questões óbvias. Talvez este seja um dos grandes pontos cegos quando a gente tenta fazer esses debates (da luta antirracista) e sempre é pontuado a falta de ligação efetiva entre a gente.

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