Mafalda, a heroína dos quadrinhos mais questionadora da Argentina, chega aos EUA
Para Liniers, cartunista argentino que hoje mora nos EUA, "Esta é, sem dúvida, a história em quadrinhos que o país precisa neste momento"
Quando o cartunista argentino Quino morreu em 2020, aos 88 anos, deixou para trás uma criança que questionava a autoridade, odiava sopa e pertencia ao mundo.
Mafalda, a estrela da adorada história em quadrinhos de Joaquín Salvador Lavado, é, em todos os aspectos, uma sensação global: estátuas na Argentina e na Espanha; créditos em animação na TV (incluindo uma série da Netflix em breve); calendários, canecas de café e bolsas de maquiagem adornadas com seu característico corte chanel e laço de cabelo em todos os lugares, da Cidade do México a Milão.
Mas, no entanto, Mafalda é relativamente desconhecida nos Estados Unidos, com poucas traduções para o inglês e pouca ou nenhuma distribuição da história em quadrinhos nos país. Uma próxima coletânea de cinco volumes da Elsewhere Editions está prestes a mudar isso. Para aqueles que veem na obra de Quino um roteiro para navegar no clima político polarizado, o primeiro volume, previsto para ser lançado nesta semana, chega no momento exato.
“Esta é, sem dúvida, a história em quadrinhos que o país precisa neste momento”, disse Ricardo Siri, que cresceu lendo “Mafalda” na Argentina e agora mora em Vermont. (Ele também é autor de “Macanudo” e outras obras sob o pseudônimo de Liniers.) “Mafalda tem seu ponto de vista, mas sempre aceita como amigas pessoas muito diferentes dela.”
Quando o público americano mais amplo conhecer Mafalda, encontrará uma garota que se assemelha à personagem icônica de Ernie Bushmiller, Nancy, mas cujas travessuras são inteiramente próprias. Mafalda alcança o espaço sideral em um jetpack movido a água com gás e está aberta a todos os tipos de experiência. Mesmo que seja improvável que ela ajude Democratas e Republicanos a se darem bem, seu tipo de curiosidade inocente, porém opinativa, pode mostrar aos chamados adultos como fazer o melhor pelas gerações futuras.
“Mafalda tenta decifrar o que o mundo adulto significa e, quando erra, as maneiras pelas quais erra, na verdade, iluminam melhor as inconsistências, as incongruências e o ridículo”, disse Frank Wynne, que traduziu os volumes do espanhol.
Publicada pela primeira vez em 1964 no semanário argentino “Primera Plana” — com material originalmente desenhado para uma campanha publicitária não realizada de eletrodomésticos — “Mafalda” mistura sátira mordaz com humor jocoso, repleto de significados que atraem leitores de todas as idades. A tira de Quino frequentemente exala a mesma generosidade de espírito de outras histórias em quadrinhos contadas a partir da perspectiva infantil, mas “Mafalda” também é mais abertamente política do que “Peanuts” ou “Calvin e Haroldo”.

“É Charlie Brown com socialismo”, disse Liniers.
Os amigos e colegas de elenco de Mafalda representam as correntes sociais e ideológicas que agitaram a política global, e especialmente a sociedade argentina, nas décadas de 1960 e 1970. A tradicionalista Susanita absorveu o elitismo aspiracional de seus pais; Manolito ajuda a administrar a mercearia do pai e acredita apenas na economia; a tartaruga de estimação de Mafalda, que se move lentamente, chama-se Burocracia. Um ponto forte da tira reside em retratar as tentativas de entendimento que ocorrem entre personagens que representam direita e esquerda, liberais e conservadores, pé no chão e idealistas.
Quino parou de escrever "Mafalda" em 1973, um ano antes da morte do presidente populista Juan Perón. Dois anos depois, sua esposa e sucessora, Isabel Perón, foi deposta por uma junta militar que permaneceria no poder até 1983. Quino deixou a Argentina e foi para a Itália logo após o golpe, mas seus trabalhos posteriores, incluindo livros e charges para jornais na Espanha e em outros lugares, aguçaram ainda mais sua crítica social.
Os anos imediatamente posteriores a "Mafalda" também coincidiram com uma escalada da campanha de brutalidade mórbida, quase surreal, da junta contra guerrilheiros de esquerda, peronistas, intelectuais, jornalistas e outros supostos inimigos. Anos depois, Quino disse a uma revista espanhola que, se Mafalda tivesse sido uma garota de verdade, ela "teria sido uma das 30 mil vítimas desaparecidas" da chamada Guerra Suja da junta militar argentina.
“Se você começa a ler com esses livros, o que Mafalda ensina quando você é uma criança não é a se comportar, mas sim a fazer perguntas, a duvidar do mundo que vem de cima”, disse Liniers.
Ainda assim, embora os comentários políticos muitas vezes sejam diretos (quando Mafalda se recusa a limpar o quarto porque está fingindo ser presidente, sua mãe alega ser o Fundo Monetário Internacional), o senso de humor de Quino e a perspectiva da menina mantêm o tom leve. Quando Mafalda pergunta ao pai sobre a Guerra do Vietnã, ela interpreta sua resposta eufemística e resmungona como se tivesse algo a ver com “os pássaros e as abelhas”.
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“Mafalda é uma menina de 6 anos que está chegando aos 60 e que tentava ter uma visão filosófica do mundo, mas não é desprovida de admiração infantil”, disse Wynne.
Essa combinação tornou Mafalda um nome conhecido em toda a América Latina e também em grande parte da Europa e Ásia, apesar da curta duração da tira, de apenas nove anos. (Em comparação, "Peanuts" durou cinco décadas.)
Quanto ao motivo pelo qual "Mafalda" nunca pegou nos EUA, há muitas explicações possíveis: a natureza da distribuição de jornais, que leva as tiras para cidades culturalmente distintas em todo o país, fazendo com que o estilo de sátira de Quino pareça arriscado para as editoras; o momento histórico (Liniers aponta que as presidências de Richard Nixon e Ronald Reagan, durante a Guerra Fria, podem não ter sido propícias ao envolvimento da tira com temas políticos de esquerda); ou talvez apenas o fato de que o humor não pode ser facilmente categorizado como sendo para uma faixa etária específica.

Quino disse que aposentou "Mafalda" para evitar que se tornasse repetitivo, embora mais tarde tenha comentado que a ascensão de governos militares de direita na região, como o de Augusto Pinochet no vizinho Chile, significava que ele "teria sido baleado" se tivesse continuado a desenhá-la. A Argentina não era mais um lugar, mesmo nos quadrinhos, para pessoas com diferentes visões de mundo se encontrarem.
"Esse tipo de interação entre diferentes setores sociais simplesmente não acontecia mais", disse Liniers, observando que começou a ver uma divisão semelhante nos Estados Unidos. "Vejo isso com muita preocupação, porque na Argentina não terminou bem. Acabou em ditadura."