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Morte também é música e poesia
Compositores também citam a morte em suas canções
A origem do Dia de Finados, que se tem registro desde o século 2, está associada à ideia da continuação da existência após a morte terrena, portanto, é mais um pensamento de continuidade do que de fim. Em Pernambuco, a morte é bastante explorada, sobretudo, na cultura popular, no universo dos cantadores e da literatura de cordel. Curiosamente, nos últimos anos, tem sido também um tema bastante abordado pelos compositores da chamada cena musical pernambucana.
“Quando/ Ela morreu/ Deu-se o óbvio,/ Eu me tornei um viúvo e passei a amá-la”
“Filhosofia” (2012), álbum do músico arcoverdense Vertin Moura, é o que mais traz reflexões sobre a morte, presente em pelo menos cinco das 13 canções do disco: “À que Morreu” (parceria com Ícaro Tenório, também gravada pelo caruaruense Almério em seu CD solo), “O Vinagre e o Vinho” (de Jair Galvão), “Morte” (parceria com Jair), “Velório” e “Permutação”. “Em meio aos 26 anos de idade e juntando as poucas leituras de livros que vivi, o tema da morte, quando presente, sempre se destacou numa ‘ideia de que não terei meu bem maior’ (a consciência/existência). Saber de nosso fim algumas vezes se transforma em sentir ansiedade, angústia, depressão, um mal ao espírito”, fala o compositor. “Comigo, racionalidade e intuição se misturam e recebo impulsos para um processo de criação, de expressão e que é bem possível que faça-o para me curar desse mal-estar. Pelo menos por alguns instantes a morte passa a ser musa inspiradora para o viver e começo a me aproximar do tema da nossa finitude com certa tranquilidade.
Surge uma música, um verso, um rabisco, um pensamento e as filosofias.”
Surge uma música, um verso, um rabisco, um pensamento e as filosofias.”
Vertin ainda cita um diálogo com Schopenhauer, Nietzsche, Jim Morrison e Raul Seixas para explicar a expressão artística à qual aderiu nas músicas que apresentam o tema da morte. “Está arraigada na busca da aceitação de que a morte não é fim de tudo que somos, mas apenas uma etapa diferente da existência”, conta.
“O ar que preciso,/ A casa onde moro/ E desde que você partiu,/ Eu choro”
“(...) Porque já pude notar/ Que em todo lugar que eu vou/ O povo já se matou”
“Mas eu não quero ir embora/ Sai daqui/ Não me ponha o paletó”
Outro compositor que tratou exaustivamente o tema da morte recentemente foi Juliano Holanda, 39, autor da série “Amorteamo” (2015), da Rede Globo, e da peça “Ossos” (2016), do Coletivo Angu de Teatro. A primeira surgiu como uma livre adaptação do dramaturgo Newton Moreno de sua peça “Assombrações do Recife Velho” - por sua vez inspirada na obra homônima do escritor Gilberto Freyre. Já a segunda é uma versão do escritor pernambucano radicado em São Paulo Marcelino Freire de seu romance biográfico “Nossos Ossos”.
“’Amorteamo’ tem muito de realismo fantástico”, conta Juliano. “A morte é o que dá sentido pra vida”, acredita ele. “O roteiro foi mudando à medida que a gente foi construindo a trilha sonora. A ideia de Flávia Lacerda (diretora-geral) e João Falcão (que assina a concepção musical) é que o roteiro e a trilha fossem se contaminando. É um conceito de morte, mas que significa muitas coisas.”
“Por coincidência fiz a trilha da peça ‘Ossos’”, diz o compositor. “É uma peça que explora muito essa relação de “interior” e “Capital”, Pernambuco e São Paulo. As pessoas que estavam mortas, morriam na cidade natal (Recife) para reviver na cidade idílica (São Paulo).”
“(...) Porque já pude notar/ Que em todo lugar que eu vou/ O povo já se matou”
Para o músico Siba, 47, que afirma ser a composição “um exercício constante”, a morte “é um tema universal, de todos, inevitável”. E está bastante explícito em “A Velha da Capa Preta”, faixa do álbum “Toda Vez que Eu Dou um Passo o Mundo Sai do Lugar” (2007), do projeto Siba e a Fuloresta.
“Tem ao mesmo tempo uma pegada leve, de humor, que nossa cultura dá. E dialoga com aquela ideia de ‘As Intermitências da Morte’ (2005), de José Saramago. É impossível pensar na vida sem a perspectiva da morte. Se não, tem-se uma perspectiva tola, de sensação falsa de segurança, de longevidade. A perspectiva da morte dá um significado à vida”, considera o autor.
“Mas eu não quero ir embora/ Sai daqui/ Não me ponha o paletó”
“Morte!” é também o título de uma canção do compositor Clériston, 63, gravada no álbum “HQCD ...e o Som Virou Quadrinhos” (2004). “‘Morte!’ é uma ‘resposta’ aos ‘ditadores da moral’. Acho que por minha formação evangélica, já detestava na igreja os irmãos moralistas, pois os entendia como ‘sepulcros caiados’, apontados por Cristo”, define o autor. “‘Morte!’ é sobre as ‘aves de rapina, os carniceiros devoradores de homens - de suas consciências e de seu dinheiro. Também os que atuam para deixar o povo na ignorância eterna, sem educação e sem oportunidades na sociedade. ‘Não me ofereçam vida eterna, encarnação’ explica meu desapego das ideologias das religiões que tentam manter a nós escravos obedientes. Querem que vivamos apenas de esperança. As oligarquias, os corruptos, o poder eclesiástico, as elites retrógradas são a morte”, explica ele.
Ainda para Clériston, o conceito de morte passa por mistério e transformação. “Mistério por conta do espírito humano, esse adorável e enigmático desconhecido; e transformação da matéria orgânica em adubo, cinzas, alimento para outras formas de vida.”
“Hoje faz um dia lindo de morrer...”
“Hoje faz um dia lindo de morrer...”
Apesar de contar com o verbo na letra, “Um Dia Lindo de Morrer”, canção do álbum “Simulacro” (2007), segundo seu próprio autor, o cantor e compositor China, 36, não tem uma relação direta com a morte. “A inspiração veio de um momento realmente muito ruim na minha vida. Morava no Rio de Janeiro nessa época e nada dava certo, nenhuma perspectiva de nada bom acontecer. Daí eu me via numa depressão profunda e olhava pela janela e estava aquele sol incrível, aquela cidade incrível, e nada combinava com meu sentimento”, lembra. “Mas, no fim das contas, não é uma música que fala ou deseja a morte. Era exatamente essa dicotomia: como pode tudo estar claro de um lado e do outro tudo escuro.”
China completa dizendo que não faz ideia do que seja a morte. “Só sei que existe. Não espero por ela, até porque, uma hora ou outra ela nos alcança.”