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Morte também é música e poesia

Compositores também citam a morte em suas canções

Bruno Araújo, ministro das CidadesBruno Araújo, ministro das Cidades - Foto: Arthur Mota/Folha de Pernambuco

A origem do Dia de Finados, que se tem registro desde o século 2, está associada à ideia da continuação da existência após a morte terrena, portanto, é mais um pensamento de continuidade do que de fim. Em Pernambuco, a morte é bastante explorada, sobretudo, na cultura popular, no universo dos cantadores e da literatura de cordel. Curiosamente, nos últimos anos, tem sido também um tema bastante abordado pelos compositores da chamada cena musical pernambucana.

“Quando/ Ela morreu/ Deu-se o óbvio,/ Eu me tornei um viúvo e passei a amá-la”
“Filhosofia” (2012), álbum do músico arcoverdense Vertin Moura, é o que mais traz reflexões sobre a morte, presente em pelo menos cinco das 13 canções do disco: “À que Morreu” (parceria com Íca­ro Tenório, também grava­da pelo caruaruense Almério em seu CD solo), “O Vinagre e o Vinho” (de Jair Galvão), “Mor­te” (parceria com Jair), “Ve­lório” e “Permutação”. “Em meio aos 26 anos de ida­de e juntando as poucas leituras de livros que vivi, o te­ma da morte, quando presen­te, sempre se destacou numa ‘ideia de que não terei meu bem maior’ (a consciência/e­xis­tência). Saber de nosso fim algumas vezes se transforma em sentir ansiedade, angústia, depressão, um mal ao espírito”, fala o compositor. “Comigo, racionalidade e intuição se misturam e recebo impulsos para um proces­so de criação, de expressão e que é bem possível que faça-o para me curar desse mal-estar. Pelo menos por alguns instantes a morte passa a ser musa inspiradora para o viver e começo a me aproximar do tema da nossa finitude com certa tranquilidade.

Surge uma música, um verso, um rabisco, um pensamento e as filosofias.”
Vertin ainda cita um diálogo com Schopenhauer, Nietzsche, Jim Morrison e Raul Seixas para explicar a expressão artística à qual aderiu nas músicas que apresentam o tema da morte. “Está arraigada na busca da aceitação de que a morte não é fim de tudo que somos, mas apenas uma etapa diferente da existência”, conta.

“O ar que preciso,/ A casa onde moro/ E desde que você partiu,/ Eu choro” 
Outro compositor que tratou exaustivamente o tema da morte recentemente foi Juliano Holanda, 39, autor da série “Amorteamo” (2015), da Rede Globo, e da peça “Ossos” (2016), do Coletivo Angu de Teatro. A primeira surgiu como uma livre adaptação do dramaturgo Newton Moreno de sua peça “Assombrações do Recife Velho” - por sua vez inspirada na obra homônima do escritor Gilberto Freyre. Já a segunda é uma versão do escritor pernambucano radicado em São Paulo Marcelino Freire de seu romance biográfico “Nossos Ossos”.
“’Amorteamo’ tem muito de realismo fantástico”, conta Juliano. “A morte é o que dá sentido pra vida”, acredita ele. “O roteiro foi mudando à medida que a gente foi construindo a trilha sonora. A ideia de Flávia Lacerda (diretora-geral) e João Falcão (que assina a concepção musical) é que o roteiro e a trilha fossem se contaminando. É um conceito de morte, mas que significa muitas coisas.”
“Por coincidência fiz a trilha da peça ‘Ossos’”, diz o compositor. “É uma peça que explora muito essa relação de “interior” e “Capital”, Pernambuco e São Paulo. As pessoas que estavam mortas, morriam na cidade natal (Recife) para reviver na cidade idílica (São Paulo).”

   “(...) Porque já pude notar/ Que em todo lugar que eu vou/ O povo já se matou” 
Para o músico Siba, 47, que afirma ser a composição “um exercício constante”, a morte “é um tema universal, de todos, inevitável”. E está bastante explícito em “A Velha da Capa Preta”, faixa do álbum “Toda Vez que Eu Dou um Passo o Mundo Sai do Lugar” (2007), do projeto Siba e a Fuloresta.
“Tem ao mesmo tempo uma pegada leve, de humor, que nossa cultura dá. E dialoga com aquela ideia de ‘As Intermitências da Morte’ (2005), de José Saramago. É impossível pensar na vida sem a perspectiva da morte. Se não, tem-se uma perspectiva tola, de sensação falsa de segurança, de longevidade. A perspectiva da morte dá um significado à vida”, considera o autor.

“Mas eu não quero ir embora/ Sai daqui/ Não me ponha o paletó”
“Morte!” é também o título de uma canção do compositor Clériston, 63, gravada no ál­bum “HQCD ...e o Som Vi­rou Quadrinhos” (2004). “‘Mor­te!’ é uma ‘resposta’ aos ‘ditadores da mo­ral’. A­cho que por minha for­mação evangélica, já detestava na igreja os irmãos moralistas, pois os entendia como ‘sepulcros caiados’, apontados por Cristo”, define o autor. “‘Morte!’ é sobre as ‘aves de rapina, os carniceiros devoradores de homens - de suas consciências e de seu dinheiro. Também os que a­tuam para deixar o povo na ignorância e­ter­na, sem educação e sem oportunidades na sociedade. ‘Não me ofereçam vi­da eterna, en­carnação’ expli­ca meu desapego das ideolo­gias das re­ligiões que tentam manter a nós escravos obedientes. Querem que vivamos apenas de esperança. As oligarquias, os corrup­­tos, o poder eclesiás­­tico, as elites retrógradas são a morte”, explica ele.
Ainda para Clériston, o conceito de morte passa por mistério e transformação. “Mistério por conta do espírito humano, esse adorável e enigmático desconhecido; e transformação da matéria orgânica em adubo, cinzas, alimento para outras formas de vida.”

“Hoje faz um dia lindo de morrer...”
Apesar de contar com o verbo na letra, “Um Dia Lindo de Morrer”, canção do álbum “Simulacro” (2007), segundo seu próprio autor, o cantor e compositor China, 36, não tem uma relação direta com a morte. “A inspiração veio de um momento realmente muito ruim na minha vida. Morava no Rio de Janeiro nessa época e nada dava certo, nenhuma perspectiva de nada bom acontecer. Daí eu me via numa depressão profunda e olhava pela janela e estava aquele sol incrível, aquela cidade incrível, e nada combinava com meu sentimento”, lembra. “Mas, no fim das contas, não é uma música que fala ou deseja a morte. Era exatamente essa dicotomia: como pode tudo estar claro de um lado e do outro tudo escuro.”
China completa dizendo que não faz ideia do que seja a morte. “Só sei que existe. Não espero por ela, até porque, uma hora ou outra ela nos alcança.”

 

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