Logo Folha de Pernambuco
Arte

"Pintura final" de Van Gogh, do dia de sua morte, gera briga em "paraíso dos artistas"

Autoridades de Auvers-sur-Oise disputam com proprietários de terreno o controle de área em que crescem (e são preservadas) raízes retratadas pelo holandês

Visitantes observam quadros de Vincent Van Gogh, numa prévia para a imprensa da exposição 'Van Gogh: Poetas e Amantes', na National Gallery, em Londres Visitantes observam quadros de Vincent Van Gogh, numa prévia para a imprensa da exposição 'Van Gogh: Poetas e Amantes', na National Gallery, em Londres  - Foto: Henry Nicholls/AFP

Auvers-sur-Oise, uma vila perto de Paris famosa por ser o "paraíso dos artistas", também é onde Vincent Van Gogh passou seus últimos dias.

O local, há muito tempo, atrai turistas interessados em seguir os últimos passos do pintor.

Mas, desde que especialistas em arte identificaram a última obra dele e qual foi sua inspiração, a cidade virou palco de conflitos.

A última pintura de Van Gogh foi contestada por décadas, pois ele não datou suas obras. Em 2020, especialistas concluíram que as raízes retorcidas de árvores que se projetavam de uma encosta em Auvers, como as retratadas em "Tree Roots,", foram feitas no dia de sua morte, em 1890.

Essa descoberta pode ter resolvido uma disputa, mas imediatamente gerou outra, desta vez entre a prefeitura e os proprietários da área onde aquelas raízes crescem.

A raiz principal retratada na pintura — de uma acácia-negra e apelidada de "elefante" pelos entusiastas — confina com uma via pública.

Com a descoberta de seu valor histórico, o município reivindicou um trecho de terra privada próximo à estrada como domínio público, alegando a necessidade de manutenção.

Jean-François e Hélène Serlinger, os proprietários do terreno, passaram a lutar pelo espaço contra a vila, e um tribunal de apelação concluiu recentemente que não havia fundamento para a reivindicação do município.

Ainda assim, a prefeita de Auvers, Isabelle Mézières, prometeu continuar lutando. Ela ainda pode recorrer a um tribunal superior.

Após a decisão, Isabelle insistiu que o local deveria pertencer ao público, não a proprietários privados. "As raízes pertencem aos Auversois!", escreveu ela nas redes sociais, referindo-se aos cidadãos da região.

A luta pelo domínio da região das raízes das árvores de Van Gogh lançou uma sombra sobre o que costuma ser uma temporada de comemorações em Auvers.

Com população de sete mil habitantes, a região se beneficia do turismo artístico, grande negócio que se intensifica na primavera europeia.

Risco no "paraíso dos artistas"
O fato de a vila ter sido retratada por outros pintores notáveis, incluindo Pierre Auguste Renoir, Paul Cézanne e Camille Pissaro, só aumentou sua atração.

Sua popularidade é tamanha que as autoridades de trânsito francesas operam uma linha sazonal de Paris, apelidada de "Trem dos Impressionistas", e pessoas vêm de longe para ver o que o conselho de turismo local chama de "o museu a céu aberto que Auvers se tornou ao longo do tempo".

Os proprietários afirmam que o conflito com as autoridades está colocando o local histórico em risco, já que a prefeitura os impediu de proteger adequadamente as raízes desde que sua importância foi identificada.

Em entrevista por telefone, Jean-François Serlinger acusou a prefeitura de usar o processo administrativo como pretexto para "uma tentativa de tomada de posse de um local culturalmente significativo" e, simultaneamente, de colocar as raízes em risco ao "obstruir a instalação de uma estrutura de proteção permanente".

Procurada pelo NYT, a prefeitura se recusou a comentar o caso. Analistas ponderam que talvez seja apropriado que essas raízes sejam objeto de uma disputa tão complexa.

A famosa pintura de Van Gogh representando a árvore emaranhada mostra "a luta da vida e a luta contra a morte", disse Wouter van der Veen, o pesquisador francês que identificou as raízes, em 2020.

Ainda assim, a pintura é brilhante e vibrante, feita no final de um período produtivo na conturbada existência de Van Gogh — depois que ele cortou a própria orelha e passou um tempo em um asilo.

A vila celebra o pintor holandês cuja obra foi rejeitada em vida e acolhida após sua morte. Van Gogh é uma grande atração, inclusive para os Serlingers.

O casal se mudou para Auvers em 1996 porque Hélène Serlinger, uma artista, queria morar onde Van Gogh havia trabalhado.

Em 2013, eles compraram um pequeno terreno adicional perto de sua casa, conectado ao seu quintal, ampliando sua propriedade.

Somente anos depois se descobriu que as raízes daquela nova área eram uma parte importante da História da arte.

Visitas guiadas a R$ 50
Agora, as raízes têm seu próprio site e uma organização sem fins lucrativos, administrada pelos Serlingers, que afirmam querer proteger o local para que o público possa apreciá-lo.

Eles firmaram uma parceria com a Fundação Van Gogh Europa, que reúne locais e museus importantes ligados ao pintor sob a direção do Museu Van Gogh em Amsterdã.

No ano passado, os Serlingers começaram a abrir o quintal para visitas guiadas.

Jean-François Serlinger insiste que o casal não pretendia transformar seu quintal em um destino turístico e não se beneficiou das visitas guiadas.

Ele observou que a raiz principal é praticamente visível ao público da estrada, embora a prefeitura tenha colocado uma placa de 3 metros de altura destacando a descoberta, que obstrui parcialmente a vista e "desfigura a fachada".

Foi o entusiasmo de especialistas em arte e acadêmicos que os visitaram ao longo dos anos que convenceu o casal a abrir suas terras ao público, disse ele.

Agora, eles cobram cerca de US$ 9 (mais de R$ 50, na cotação atual) por uma "caminhada de 30 minutos pela paisagem da pintura final de Van Gogh", acrescentou. Os fundos cobrem os custos de preservação.

Sábado marcou o início da nova temporada turística. Mas a disputa deixou os proprietários inquietos e levantou preocupações sobre a preservação das raízes.

"Isso criou uma profunda sensação de insegurança em torno de um local que exige calma e serenidade" disse Jean-François Serlinger.

"Temos um sentimento de insegurança com uma prefeitura que ainda está em guerra"

Veja também

Newsletter