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Cultura

Retrofuturismo: entenda por que a cultura pop voltou ao passado para recriar o futuro

Temporalidades alternativas alimentam alimentam séries, livros e games, e geram debate sobre falência das utopias entre os mais jovens

Episódio "Beyond the Sea", da nova temporada da série Black MirrorEpisódio "Beyond the Sea", da nova temporada da série Black Mirror - Foto: Divulgação

O terceiro episódio da nova temporada de “Black Mirror” (Netflix), “Beyond the sea”, se desenrola em uma versão alternativa de 1969. A tecnologia é muito mais avançada, permitindo que androides substituam na Terra astronautas enviados em uma missão espacial.

Algo parecido acontece em outra série que estreou este ano, “Hello tomorrow” (Apple TV+), sobre um grupo de vendedores inescrupulosos que tenta vender residências na Lua nos anos 1950. O cenário reconstrói a arquitetura e o figurino daquela década, mas incluindo delírios futuristas bem característicos do período, como pessoas decolando em mochilas a jato no estilo The Rocketeer.

Essa espécie de pedalada temporal é conhecida como retrofuturismo — tendência na cultura pop que imagina futuros fictícios a partir de visões passadas do que estaria por vir. Como as que víamos décadas atrás nos “Jetsons” ou nos romances de Júlio Verne, e que hoje parecem no mínimo excêntricas: carros voadores, autoestradas infinitas, colônias em planetas distantes e outras invenções sonhadas por nossos antepassados.

O imaginário vem respingando na moda e no design — basta ver o reinteresse em itens de decoração como a luminária Eclisse ou as cadeiras Ball e Panton. Também está no centro de um nicho da ficção científica o steampunk, cujas histórias se situam num século XIX em que invenções tecnológicas ocorreram mais rápido. E sua presença continua forte no videogame, como demonstra a influência cultural do jogo “Cyberpunk 2077”, que cria uma distopia a partir de um olhar oitentista.

‘Tudo uma coisa só'
Mas, além do aspecto visual, a tendência traz ainda um debate sobre o presente, que fascina pesquisadores e críticos de arte: por que desejamos ver o futuro a partir do passado?

— Ler como um autor ou autora imaginou o que seria o futuro a partir da lente do século XIX ou começo do século XX nos ajuda a entender como o contexto atual moldou essa especulação — diz a mestre em semiótica e autora de ficção científica Lidia Zuin. — Podemos pensar o quanto o autor conseguiu transcender esses vieses e o quanto se tornou obsoleto, inclusive pensando nos vieses que temos hoje e que certamente se tornarão obsoletos no futuro.

A própria Zuin já trabalhou como futuróloga, o campo de estudos que antecipa tendências e contextos prováveis, mas diz preferir hoje o “olhar do historiador”:

— Não existem presente, passado e futuro, é tudo uma coisa só, e muitas coisas do passado ainda estão presentes, como muitas coisas do presente estarão no futuro.

As origens do retrofuturismo vêm de longe, mas sua ressurgência na cultura pop aparece muitas vezes dentro de um contexto geracional. A cantora Júlia Branco, de 37 anos, apostou numa estética com futuro retrô em seu novo clipe, “Fim e começo”, dirigido por Virginia Pitzer. A ideia, que também permeia seu novo álbum, era expressar o lugar “fora do tempo” de sua geração: nem tão analógico como os pais dela, nem tão tecnológico como os jovens nascidos nos anos 2000.

— Minha geração é a última que viveu o analógico e também cresceu vendo a internet — diz ela. — Hoje, parece impossível olhar para o futuro diante do absurdo do presente, com tanto desastre e crise política. O retrofuturismo era o lugar possível dentro dessa perspectiva, de olhar para os futuros ideais que nos foram projetados na infância e que agora se desfarelam, como as utopias digitais, por exemplo.

‘Presentismo’
Criadora do Central Pandora, canal no YouTube sobre ficção científica, Sora Barbosa lembra que os conceitos retrôs em voga geraram toda uma nova cultura baseada em nostalgia. Ela cita o synthwave e o vaporwave, que usam o neon e sintetizadores e uma estética cyberpunk para criar uma visão retrofuturista moderna sobre os anos 1980.

— São estilos que se baseiam na atual nostalgia que as pessoas têm em relação a essa época, mas também encantam os mais jovens, que passam a viver uma “nostalgia por um futuro que não existiu” — diz a youtuber.

Entre os teóricos do “presentismo”, a tese de que a sociedade contemporânea nos prendeu em um eterno presente, o retrofuturismo é visto como um atestado. Segundo eles, os millennials e a geração Z estariam fadados a reciclar utopias do passado porque se tornaram incapazes de sonhar os seus próprios porvires. Mas, de acordo com a pesquisadora Mônica Rebecca Ferrari Nunes, que estuda utopias e retrotopias, é um erro tratar o retrofuturismo como mera nostalgia, ou como uma impossibilidade de futuro.

— Não se trata de um retorno ingênuo a outras eras, porque o retrofuturismo é sempre colonizado por um imaginário crônico que atravessa diferentes temporalidades — diz a professora de comunicação e consumo da ESPM. — Ao vir do passado, o futuro chega de forma mais aberta, disponível, porque podemos pensá-lo como um fantasma de algo que já aconteceu. É como se nos apoiássemos no passado para projetar no próprio presente alguma coisa que era de um “futuro”.

Entre utopia e distopia
Ao inserir problemáticas do nosso tempo em visões futuristas do passado, o retrofuturismo tornou-se um território fértil para criticar realidades do presente. Um exemplo é o prolífico steampunk, que fez sucesso na HQ com “A liga extraordinária”, mas também vem se consolidando na literatura. Normalmente ambientadas na época da Revolução Industrial, as narrativas desse subgênero da ficção científica trazem maquinarias pesadas da era do vapor, só que surrupiando aqui e ali alguns elementos que ainda não tinham sido inventados, como computadores ou submarinos.

— O steampunk explora mundos onde a tecnologia a vapor avançou acima das demais, fazendo com que tudo se resumisse a engrenagens, bugigangas malucas e maravilhas mecânicas que poderiam fazer coisas teoricamente impossíveis para a época — diz Bela Eichler, criadora e apresentadora do canal Futurices, no YouTube. — Apesar de muito interessante e inventivo, esse futuro nunca chegou, pois surgiu, após a 3a Revolução Industrial, a Era da Informação no século XX, que trouxe no lugar da tecnologia a vapor a tecnologia digital e a automatização.

Assim como sua variante cyberpunk, ligada ao imaginário dos anos 1980, os livros steampunk variam entre a utopia e a distopia, não raro tecendo críticas a uma certa visão de progresso tecnológico, social e econômico. É o caso de “Parthenon místico” (2020), romance do gaúcho Enéias Tavares, que volta ao Brasil dominado pelos ideais positivistas do fim do século XIX. O vilão é um protofrenologista que tenta levar as ciências ao seu limite. Nesse passado que nunca existiu, a tecnologia a vapor permite a existência de carruagens sem cavalos, máquinas voadoras e prodigiosos robôs autômatos.

— Os heróis do livro lutam contra essa visão racionalista do progresso, ao unir ciência e magia, tecnologia e misticismo, ideais incorporados no Dr. Benignus, o mago-cientista do grupo — conta Tavares. — Quando me volto para o passado, não é para olhar a alta sociedade, mas sim os marginalizados, as minorias que não haviam sido representadas (nas narrativas da época) ou não eram protagonistas. Isso é o que faz o apelo do steampunk para o público contemporâneo.

Futuros rebeldes
Nos últimos anos, o steampunk extrapolou o formato dos livros, gerando encontros de cosplay em que os steampunkers fazem uma releitura contemporânea das vestimentas de outras épocas. É comum, por exemplo, ver jovens adultos vestindo roupas vitorianas femininas em que elementos “opressores”, como espartilhos, foram modificados.

— Nesses eventos, códigos do passado são muitas vezes recriados e subvertidos — explica Mônica Rebecca Ferrari, autora de “Cosplay, Steampunk e Medievalismo: memória e consumo nas Teatralidades Juvenis” (Ed. Sulina). — Certa vez perguntei a uma jovem adulta por que usava roupas vitorianas, já que elas representavam uma opressão às mulheres. A jovem respondeu que, na Inglaterra vitoriana dela, as mulheres não eram oprimidas, porque ela podia ser o que quisesse. Essas sociabilidades trazem todo um movimento de criação, que as liberta de um mundo esquadrinhado e invade espaços-tempo.

Para Enéias Tavares, o retrofuturismo é uma forma de aglutinar passado e futuro pensando em soluções mais criativas para o presente — e, também, para um futuro mais “rebelde”.

Há anos ele vem trabalhando nas escolas o seu projeto “Brasiliana Steampunk”, que retrata um Brasil retrofuturista do pós-abolição, colocando em cena personagens clássicos da literatura brasileira, como o Isaías Caminha, de Lima Barreto, e o Simão Bacamarte, de Machado de Assis. No site do projeto , Tavares chegou a criar anúncios de produtos da época que nunca existiram.

— Sem imaginação, é impossível projetar um futuro ou pensar um futuro — diz Tavares. — Como educador e como escritor, acredito muito na nossa capacidade de imaginar novos mundos, seja esses mundos do passado com viés futurista, seja mundos futuristas com viés do passado.

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