Série 'O Mecanismo' amplia debate sobre liberdade de expressão
Criação da plataforma de streaming Netflix estreou envolta em polêmica, polarizando discussões nas redes sociais
No dia em que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região rejeitou os embargos de declaração do ex-presidente Lula (PT) no processo sobre o tríplex do Guarujá, tornando-o na prática inelegível, a polêmica que povoou as redes sociais tanto de direita como de esquerda foi outra: a série "O Mecanismo", lançada pela plataforma de streaming Netflix na última sexta-feira. Baseada no livro "Lava jato: o juiz Sérgio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil", de Vladimir Netto, a série foi dirigida por José Padilha (o mesmo de "Tropa de Elite") e causou diversas reações inflamadas.
Coincidência ou não, o site Cine Pop registrou que o valor das ações da Netflix no mercado subiu. Ontem, nas redes sociais, a empresa intensificou seus anúncios, frisando para potenciais novos assinantes que o primeiro mês de assinatura sai de graça. A plataforma de streaming chegou ao ponto de montar uma loja fake no aeroporto de Brasília, vendendo tornozeleiras eletrônicas e outros produtos destinados a corruptos, como cuecas de bolso para guardar dinheiro, dentro de uma ação de marketing voltada para divulgar "O Mecanismo".
“Boicotar a Netflix por conta do filme, como algumas pessoas vêm fazendo, me parece algo ingênuo”, critica o professor de comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Bruno Nogueira, que é pesquisador na área das indústrias de entretenimento.
“A empresa arrecada anualmente US$ 12 bilhões [mais de R$ 39 milhões] e não se interessa por posicionamentos políticos, quaisquer que sejam. Há uma certa má fé em lançar a série próximo ao julgamento? Talvez. Mas se querem optar pelo boicote, o próprio Facebook é uma mídia mais problemática”, opina. Bruno se declara contrário à censura de produtos culturais.
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“É preciso haver liberdade de expressão, dentro dos preceitos legais de responsabilidade e bom senso. Essa polêmica certamente é mais prejudicial para a esquerda, que se mostra incoerente ao seguir o mesmo discurso da direita perante a censura, do que para a Netflix. Se a gente espera poder abrir espaço para a arte contestar, isso tem que valer para qualquer ponto de vista”, afirma ele, destacando que não vai assistir à série por conta do discurso fascista demonstrado por José Padilha em outras obras.
“Eu tenho o direito de não assistir, e ele o de se expressar, desde que não faça apologia a crimes previstos pela legislação”, finaliza.“Acho que a Netflix já devia esperar que o público reagisse dessa forma, senão não teria optado por lançar a série sobre uma investigação que ainda não foi concluída e em pleno ano eleitoral”, aponta por sua vez a professora de comunicação da Faculdade Boa Viagem (FBV), Cecília Almeida.
Série é baseada no livro 'Lava jato: o juiz Sérgio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil', de Vladimir Netto - Crédito: Netflix/Divulgação
Em seu doutorado, ela abordou o uso das controvérsias como forma de causar conversação nas redes sociais. “Quanto mais cartaz se dá a um assunto, mais ele aparece”, resume Cecília. Ela diz que também não vai assistir à série e que esta seria uma forma mais eficiente de protesto, pois os baixos índices de audiência fariam com que a Netflix descontinuasse a produção, como já fez com outras obras.
Centenas de pessoas cancelaram suas contas na Netflix, enquanto outras declararam seu apoio à plataforma e à série. Houve quem recordasse a polêmica do Cine PE - Festival do Audiovisual em maio do ano passado, em que sete cineastas retiraram seus filmes de competição, como forma de retaliar o evento, depois de terem sido divulgadas a participação de dois filmes considerados de direita: "O Jardim das Aflições", sobre Olavo de Carvalho, e "Real - O Plano por trás da história".
Obra de ficção?
O presidente do grupo Direita Pernambuco, Gustavo Henrique, que é estudante de História, classifica a série como "um mecanismo de produção de informação" e diz que vai lançar um movimento de apoio à obra. “Tentarei fazer um campanha reversa, para que as pessoas avaliem muito bem a série e venham mais assinantes”.
Já o Movimento Brasil Livre (MBL) publicou, em sua página oficial, uma postagem dizendo que o "boicote dos petistas à Netflix deve fazer a série de Padilha bombar", pois "quanto mais reclamam, mais as pessoas ficam curiosas para assistir". Surfando na onda da polêmica, a pré-candidata Marina Silva (Rede) fez uma postagem apoiando a série e usando uma foto da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada no início do mês. Após sentir a repercussão negativa, ela apagou o post.
A ex-presidenta Dilma Rousseff se pronunciou, criticando distorções dos fatos apresentados na série, que se declara uma “obra de ficção”, embora inspirada em fatos reais". "O cineasta não usa a liberdade artística para recriar um episódio da história nacional. Ele mente, distorce e falseia. Isso é mais do que desonestidade intelectual. É próprio de um pusilânime a serviço de uma versão que teme a verdade", escreveu ela em sua página oficial no Facebook. Uma das alterações mais criticadas seria o fato de colocar uma fala do senador Romero Jucá (PMDB-RR) como tendo sido proferida por Lula.
"Jucá não é dono dessa expressão [estancar a sangria] e, portanto, roteiristas estão livres para usá-la", defendeu-se José Padilha por meio de nota. "A série representa um problema sistêmico de corrupção, que não seria exclusivo do PT, mas de outros partidos e setores", acrescentou o diretor.
Entre os internautas pernambucanos que cancelaram a assinatura da plataforma estão a cantora Renata Rosa e a professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Liana Cirne. “Como consumidora, o boicote é um dispositivo legítimo que possuo para me manifestar, para dizer que não pactuo com isso e que a Netflix errou, do meu ponto de vista”, disse Liana.