"Chorei muito. Ele ressignificou minha fé"; fundador da orquestra da Maré tocou para o Papa
Orquestra formada por mais de quatro mil crianças e jovens da Maré carregam terço que ganharam do Papa, no Vaticano, até hoje
Após a morte do Papa Francisco, na madrugada desta segunda-feira, Carlos Eduardo Prazeres, fundador da Orquestra Maré do Amanhã — projeto que leva música clássica a mais de quatro mil crianças e jovens da Maré, na Zona Norte do Rio — relembrou com emoção os encontros com o pontífice.
Em 2017 e novamente em 2024, a orquestra tocou no Vaticano a canção favorita do Papa, “Por Una Cabeza”, em apresentações que comoveram Francisco e marcaram profundamente a vida dos jovens músicos da comunidade.
— Eu chorei um bocado quando soube da morte. Ele ressignificou minha fé. Ele era Jesus na Terra. Foi o primeiro Papa que me fez enxergar Jesus. Olhando para os pobres, para os mais vulneráveis, para todos os que são rejeitados pela sociedade... foi o Papa Francisco. Ele abraçou os homossexuais, os trans, todos os que o mundo insiste em marginalizar — disse Carlos Eduardo Prazeres, fundador da Orquestra Maré do Amanhã.
Em 2017 e 2024, o Papa Francisco marcou para sempre a vida de Carlos Eduardo Prazeres e dos jovens da Maré.
Nessas duas ocasiões, a Orquestra Maré do Amanhã foi até o Vaticano tocar "Por Una Cabeza", tango favorito do pontífice. Em ambas, Francisco se emocionou e quebrou o protocolo para cumprimentar um a um os músicos da favela carioca.
O fundador do projeto conta que tudo começou com um desejo antigo: receber a bênção do Papa representando a Maré.
Ainda jovem, Carlos sonhava com esse encontro — desde o dia em que não conseguiu assistir à missa celebrada por João Paulo II no Rio, da qual seu pai, o maestro Armando Prazeres, participou regendo o coral.
Em 2013, ao ver o Papa Francisco surgir na sacada do Vaticano, pedindo ao povo que rezasse por ele, Carlos relata que sentiu uma conexão imediata:
— Pensei: esse homem é diferente. Nunca vi um Papa fazer isso. Foi naquele instante que entendi, eu precisava tentar levá-lo até a Maré, ou levar a Maré até ele — disse Carlos.
Em 1999, o maestro Armando, pai de Carlos, foi sequestrado e assassinado. O carro foi encontrado na Maré e tudo indicava que o responsável era morador da comunidade. Anos depois, Carlos transformou o luto em ação: criou a Orquestra Maré do Amanhã como uma espécie de "vingança do bem", para mudar a realidade do lugar onde perdeu o pai — com a mesma música que ambos amavam.
— Ali tiraram o amor da minha vida. Eu quis fazer o amor da minha vida renascer ali. A orquestra não é um mérito meu, é de Deus — conta o criador da orquestra.
No entanto, ele conta que o encontro com o Papa não foi fácil. Na visita de Francisco ao Brasil, em 2013, ele tentou levar os jovens ao Cristo Redentor para tocar o tango. Mas a chuva impediu a apresentação.
Também tentaram um apelo na televisão, depois buscaram uma nova chance em Aparecida, em 2015, sem sucesso. Até que, em 2017, veio o telefonema: “Vocês vão tocar para o Papa no Vaticano”.
O anúncio foi feito ao vivo no programa Domingão do Faustão, da TV Globo, surpreendendo os jovens. Carlos correu atrás dos apoios e, enfim, a viagem aconteceu.
No Vaticano, o tango foi executado com perfeição. Francisco ouviu cada nota com atenção e se emocionou: “Vocês vieram do Rio de Janeiro até mim e ainda tocaram uma música da minha terra”, disse o Papa.
— A gente não tocou uma música religiosa, mas li que ele gostava daquela canção, então, na primeira vez em que tocamos o tango, eu senti que ele se emocionou de verdade. Imagina, tantos anos longe da terra dele, vivendo em Roma, e ouve a música que mais amava. Depois, quando voltamos e fomos tirar a foto com ele, o Papa olhou para orquestra e disse: ‘Nossa, as pessoas estão cada vez melhores’, e fez aquele sinal de positivo. O mesmo gesto que ele já tinha feito da primeira vez, quando disse: ‘Uau! Muito bem tocado!’ — disse o criador do projeto.
Carlos lembra que, na primeira visita, em 2017, o Papa presenteou todos os jovens com terços — lembrança que eles guardam até hoje com carinho.
Agora, ele planeja uma homenagem ao pontífice, que marcou para sempre a história dele e dos músicos da Maré.
— Ele dizia: ‘A Igreja não pode fechar as portas para ninguém. Todos somos filhos de Deus.’ Cara, isso faz uma diferença enorme. Isso diz muito sobre quem ele era. E também sobre o que a gente faz com a música. Porque a música tem esse poder de romper ciclos de violência, de exclusão, de sofrimento — contou Carlos.
Assim que soube da morte de Francisco, Carlos fez um pedido silencioso ao Papa: que interceda pela Maré e ajude a encontrar um caminho para a paz na comunidade. E também pediu força para conseguir patrocínio e manter viva a orquestra — um projeto que transforma vidas por meio da arte.
Morte do Papa Francisco
O Vaticano comunicou na madrugada desta segunda-feira que o Papa Francisco "retornou à casa do Pai" às 2h35 da manhã (horário de Brasília).
A morte foi anunciada pelo Cardeal Kevin Farrell por meio do seu canal do Telegram.
Líder da Igreja Católica e primeiro Papa argentino, Francisco tinha 88 anos.
O anúncio oficial foi feito pelo Vaticano pela manhã, um dia após o Pontífice fazer sua última aparição pública, na qual acenou para os fiéis e, com voz fraca, desejou-lhes "Boa Páscoa" durante a celebração de Páscoa na Basílica de São Pedro.
A saúde de Francisco era motivo de preocupação havia anos. Além de um episódio aos 21 anos, quando passou por uma operação que extraiu parte de seu pulmão direito por uma grave pneumonia, o Papa acumulava problemas no quadril, nas costas e tinha artrose nos joelhos, o que reduziu sua mobilidade ao longo dos anos.
Em julho de 2021, foi submetido a uma cirurgia que retirou 33 cm de seu intestino grosso em razão de uma diverticulite. Francisco chegou a admitir, em uma entrevista no final de 2022, que havia assinado uma carta de renúncia há uma década, caso sua saúde precária o impedisse de desempenhar suas funções.
Pouco tempo depois, em junho de 2023, foi submetido a uma cirurgia que durou três horas e terminou "sem complicações".
Francisco estava internado no Hospital Agostino Gemelli, em Roma.
Após ser diagnosticado com uma infecção polibacteriana nas vias respiratórias na segunda-feira (17 de fevereiro de 2025) e com uma pneumonia nos dois pulmões dois dias depois, ele sofreu uma crise respiratória asmática prolongada na manhã no sábado (22 de fevereiro de 2025) e teve de receber oxigênio em altas taxas e fazer uma transfusão de sangue.