EX-PRESIDENTE

"Condescendente" x "movido por cálculo político": juristas divergem sobre medidas contra Bolsonaro

O advogado André Perecmanis considera que havia elementos para a prisão, enquanto Renato Vieira argumenta que a domiciliar não pode ser alternativa

Bolsonaro faz campanha para garantir anistia pelo 8 de janeiro - Gustavo Moreno/STF

A decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), deu início a um debate no meio jurídico sobre alcance das medidas impostas contra o investigado. Criminalistas consultados pelo Globo discordam ao analisar sobre o teor das ordens judiciais do magistrado.

Para André Perecmanis, o ministro foi "até condescendente com o Bolsonaro". O advogado acredita que qualquer réu que tivesse agido como o ex-presidente fez já teria sido preso preventivamente. E avalia que "Bolsonaro tenta esgarçar ao máximo a relação com o Judiciário para alimentar a narrativa de mártir".

Renato Vieira, também da área de direito penal, entende que Moraes agiu provavelmente "movido por um cálculo político de contenção de reações populares" ao determinar a prisão domiciliar de Bolsonaro. O criminalista explica que a preventiva pode ser substituída pela domiciliar levando em consideração a situação de saúde ou de debilidade do réu. "Ela não pode ser decretada como medida cautelar alternativa à prisão", afirma.

 

Leia abaixo as entrevistas com os dois juristas.

Perecmanis: 'Moraes é até condescendente diante dos atos do ex-presidente'

O advogado André Perecmanis considera que o ministro Alexandre de Moraes já tinha motivos para determinar prisão preventiva e vê ex-presidente agindo para esgarçar relação com Judiciário.

A decisão que motivou a prisão domiciliar foi correta ou equivocada?
Me parece que o ministro está sendo até condescendente com o Bolsonaro. A grande verdade é que, muito embora na decisão de segunda-feira ele diga que todos no Brasil são tratados igualmente pela Justiça, qualquer réu que tenha feito o que foi atribuído ao ex-presidente Jair Bolsonaro já teria sido preso preventivamente há muito tempo. Quando Moraes estabelece medidas alternativas à preventiva, em julho, a meu ver já havia elementos para a prisão. Minha avaliação é que estão tentando a todo custo evitar uma narrativa de perseguição, mas isso me parece um erro grosseiro, porque juridicamente não tem sustentação. Além disso, jamais vão conseguir evitar que quem ainda acredita no Bolsonaro ache que o julgamento (da trama golpista) é justo. Estão negociando com um negociador que não tem interesse em negociar. Bolsonaro tenta esgarçar ao máximo a relação com o Judiciário para alimentar a narrativa de mártir.

 

Advogado André Perecmanis — Foto: Divulgação

As medidas cautelares determinadas em julho deram margem para confusões?
Nesta ocasião, acho que Moraes de fato se equivocou. A decisão não foi clara. É nítido que ninguém pode controlar o que terceiros fazem nas redes sociais (em 18 de julho, o ministro proibiu Bolsonaro de usar as próprias redes e, depois, ampliou a decisão para contas de terceiros, o que causou questionamentos da própria defesa do ex-presidente). Sem contar que é totalmente ilegal proibir que alguém dê entrevistas para dar sua versão, apesar de o ministro Luiz Fux ter feito isso com Lula lá atrás. Agora, algo diferente disso é o sujeito que está proibido de usar as redes sociais usar uma manifestação de apoiadores para veicular sua participação indireta nas redes dos filhos. Evidentemente, se isso aconteceu, descumpriu as medidas. Enquanto a proibição de dar entrevistas não tem nenhuma base jurídica e foi corrigida depois, a questão do uso das redes por terceiros é mais delicada. O que Moraes fala não é de uma hipótese em que terceiros captem algum vídeo e divulguem, e sim a produção intencional, coordenada por terceiros.

A prisão domiciliar teve como alicerce algo mais fraco (se manifestar pela redes de terceiros) do que as provas que embasaram a determinação das cautelares?
Sem dúvida. Há tempos falo que Bolsonaro acabaria sendo preso pelos motivos errados. Deveria, no meu modo de ver, estar preso preventivamente há muito tempo. As medidas que o filho dele, mancomunado com ele, vem conseguindo adotar contra o Brasil, sacrificando milhares de empregos e punindo o Judiciário para constranger e pressionar o Supremo a tomar uma decisão a favor do ex-presidente, é mais que motivo para uma prisão preventiva. Se isso não foi motivo, parece pouco razoável pensar que a declaração em uma manifestação poderia ser. Mas, se essa divulgação de falas dele violou a cautelar, é caso de prisão. Podemos discutir se a cautelar é correta ou não, mas precisa ser respeitada. E reforço que a domiciliar foi uma medida mais branda do que poderia ser.

Flávio Bolsonaro ter apagado o post em Copacabana que foi a principal justificativa para embasar a prisão poderia ser considerado um recuo e evitar a prisão?
Não existe “desdizer”. A pessoa sabe que não pode. Flávio, inclusive, é advogado, e já tinha feito isso anteriormente. Ele divulga as imagens e logo depois diz que se arrependeu. É tratar o poder Judiciário com desrespeito, desonestidade intelectual.

Esse inquérito deveria render uma denúncia contra Bolsonaro?
É muito difícil falar, porque no caso dos R$ 2 milhões enviados ao Eduardo Bolsonaro nos EUA, por exemplo, ele pode perfeitamente falar que estava financiando o filho para viver por lá. Não me parece uma prova conclusiva por si só, mas é um indício. É possível que haja denúncia, até porque evidentemente Eduardo está atuando como réu confesso, vem falando abertamente sobre isso. Mas no caso do ex-presidente é mais circunstancial, tem que ver o que mais pode ser produzido de prova. Transferência é indício, ele ser beneficiado diretamente pela atuação de Trump é outro. Imaginar que Bolsonaro não estivesse concordando com o filho ao longo de todo esse processo é bastante improvável.

A domiciliar agora impacta de alguma forma o tipo de prisão que Bolsonaro tende a cumprir se for condenado pela trama golpista?
Não vejo nenhuma possibilidade jurídica para que a pena seja cumprida desde o início de forma domiciliar. Bolsonaro vai ao Congresso, frequenta “motociatas”… Difícil convencer pela questão da saúde.

Vieira: 'Domiciliar não pode ser alternativa à prisão'

O criminalista Renato Vieira sustenta que cabe a substituição da prisão preventiva pela domiciliar quando a situação de saúde ou de debilidade do réu exige. E explica: "ela não pode ser decretada como medida cautelar alternativa à prisão".

A decisão que motivou a domiciliar foi correta ou equivocada?
Não consegui entender o ministro, mas provavelmente foi movido por um cálculo político de contenção de reações populares. Calculou que haveria uma maior reação caso determinasse a preventiva. Mas não teve sucesso, basta vermos a reação dentro e fora do país. Há um erro na consequência, mas conseguiu também o equívoco do outro lado, que é tratar a domiciliar como uma medida cautelar autônoma, o que ela não é. Ela não pode ser decretada como medida cautelar alternativa à prisão, ela é uma forma de prisão processual cujo cumprimento é diferente da preventiva, considerada a situação de saúde, de debilidade da pessoa etc. Então, infelizmente, avalio que errou tanto do ponto de vista de tentar não produzir um estardalhaço público, já que produziu, quanto no critério de atender a legalidade, porque não atendeu. Também impôs uma limitação ao uso de aparelho celular e triagem prévia de contato com as pessoas, medidas que não são previstas no Código de Processo Penal como alternativas à prisão. Vejo com muito receio um exemplo dessa natureza vindo num embate quase personalista entre um ministro e um acusado.

 

Advogado Renato Stanziola Vieira — Foto: Divulgação

Tecnicamente, então, seria mais plausível já determinar uma prisão preventiva do que a domiciliar?
O ministro havia dito depois do primeiro descumprimento que seria prisão preventiva se Bolsonaro insistisse em descumprir as medidas. E cadê? Não digo que desejo prisão preventiva, não desejo para ninguém, mas a lógica que vinha sendo adotada por parte do Moraes foi deixada de lado e patrocinou uma ilegalidade. Prisão domiciliar é um tipo de prisão. Mais do que isso, ele impôs medidas que não estão previstas na lei. Eu sou dos que acham que o ministro deveria ser mais cauteloso nos posicionamentos que assume. Acho que a motivação dele foi a de tentar ser cauteloso e passar o recado de que não quer tolher a liberdade de alguém, mas não foi feliz.

A decisão das medidas cautelares, de julho, foi confusa e deu margem para a confusão de agora?
No processo penal, nenhum juiz pode decretar uma cautelar de ofício. O Código prevê que só é decretada a pedido da vítima, do Ministério Público e da polícia. Como começou? O ministro transcreveu o pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), que falava em monitoramento, acesso a embaixadas e contato com embaixadores, sem mencionar acesso às redes. Não sabemos ainda o conteúdo da representação sigilosa da Polícia Federal, não sabemos se ela determinou a proibição de acesso às redes. Essa falta de conhecimento é grave. Se vier à luz que a PF pediu, tudo bem, mas se nem a PF tiver pedido isso, considerando que o MP não pediu, teríamos na premissa da medida uma situação muito grave, que é a adoção de uma cautelar de ofício. E isso é o ovo da serpente (da prisão), tudo começou ali.

Mas, analisando o texto das cautelares, o envolvimento de Bolsonaro nas manifestações configurou um descumprimento?
Aquilo no domingo era um discurso banal ou um ato pré-fabricado para os apoiadores? Temos um contexto probatório muito difícil. O que ele fez? Atendeu ligação do filho e deu “bom dia”, e não falou nada na ligação do Nikolas. Isso é um ato pré-fabricado? Acho questionável. O Bolsonaro estava em casa quando fez essas mensagens, então a prisão domiciliar em si também não mudaria nada, e sim a comunicação, mas não temos no Código Penal brasileiro uma proibição de comunicação. Nem no Estado de Defesa o preso é colocado em situação de incomunicabilidade. Então temos uma decisão do ministro que me pareceu inócua enquanto medida cautelar.

Esse caso todo deveria render denúncia contra Bolsonaro?
Eu esperaria que essa investigação caminhasse um pouco mais, até por uma questão estratégica. Seria importante separarmos o momento e esperarmos o julgamento da ação penal (da trama golpista) acabar. Esse inquérito de agora surgiu a partir de um foco de salvação do Bolsonaro para se salvar daquela ação penal. Ao Judiciário e ao Brasil interessa que tenhamos o desfecho da ação penal em que há provas indiscutíveis da tentativa de golpe de Estado, para que depois essa investigação da coação no curso do processo siga com serenidade. A seriedade e a serenidade podem levar, por exemplo, a quebras de sigilo telefônico de Bolsonaro, Nikolas Ferreira e os filhos do ex-presidente, que é uma medida que pode demorar um tempo, mas pode trazer provas documentadas. Se continuar com serenidade, pode esclarecer muito mais do que se houver apenas uma postura voluntarista e personalista.