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Vira-lata caramelo: cachorros sem pedigree inspiram filme, arte e ganham lugar na cultura pop

Animal é estrela de "Caramelo", que estreia ainda neste ano na Netflix; tela também destaca o cãozinho no maior museu de arte urbana do mundo

Vira-lata caramelo está em filmes, comerciais e mostra que chegou para ficar na cultura pop - Canva

Das portas de biroscas e das escadas de igrejas em todo canto do Brasil à sala de museu internacional e telas de TV em mais de 190 países. Os complexados estão, finalmente, exaltados.

Depois de se espalhar pela internet em incontáveis memes, o vira-lata caramelo mostrou que não é modismo passageiro.

Nelson Rodrigues, que cunhou a expressão “complexo de vira-lata” numa crônica esportiva de 1958 para se referir ao ímpeto nacional coletivo de subordinação, ficaria impressionado ao perceber que o cachorro hoje é paparicado em propagandas de grandes marcas e serve de inspiração para múltiplos artistas.

— É um personagem muito popular. Está em bairros, vilas, cidades do Brasil todo, e desperta um senso de comunidade e reinventa o que Nelson Rodrigues propôs do que era inferioridade — define o editor e escritor Lucas de Sena, que publicou neste ano o livro “Vira-lata caramelo”, voltado a crianças de entre 3 e 6 anos. — Virou um símbolo nacional espontâneo, não como os outros impostos por uma elite cultural.

Filme "Caramelo" é aposta da Netflix para exaltar cachorros SRD | Foto: Netflix/Divulgação

Justamente por isso, qualquer tentativa de estabelecer um marco fundador do fenômeno caramelizado é puro chute.

Mas o audiovisual só reconheceu o mascote faz pouco. Ele aparece na abertura da novela “Vale tudo”, da TV Globo, e é estrela de “Caramelo”, filme que chega ao catálogo global da Netflix ainda este ano. O protagonista de quatro patas do longa é Amendoim, ao lado do ator Rafael Vitti.

— Havia referências de filmes de fora, mas precisava fazer a nossa versão — conta Diego Freitas, diretor e um dos roteiristas do longa. — Foi quase um grito de desespero de “precisamos de um filme do vira-lata”. Todos os outros de que gostamos, tipo “Marley e eu”, “Sempre ao seu lado”, ou mesmo “Lassie” e “Bethoveen”, mostram cachorros de raça, comprados. E o vira-lata, por essência, não é comercializado. Você o escolhe, e ele escolhe você.

O mercado publicitário já fez sua escolha: quando é para ter cachorro em propaganda, o vira-lata é a opção da vez. Marca de ração, de refrigerante e até grife de joia já adotaram o símbolo.

O Banco Central, quando lançou a nota de R$ 200 estampada com o lobo-guará, em 2020, atendeu parcialmente aos pedidos das redes sociais: o cãozinho não foi parar na cédula, mas, pelo menos, foi o “garoto-propaganda” da novidade. Caramelo foi usado em uma campanha publicitária do Banco Central para apresentar a novidade, mostrando também os itens de segurança da nota, como a marca d’água e o número que muda de cor.

— A partir de 2021, começou a ter muita solicitação de vira-lata, e pedem especificamente caramelo — diz Deborah Zeigelboim, fundadora da Pet Models Brasil, uma agência de animais modelos.

A empresa, que existe desde 2017, tem 400 caramelos entre os quatro mil animais cadastrados, 60% deles na cidade de São Paulo. O cachê de uma diária de seis horas fica entre R$ 300 e R$ 400 líquidos, diz Deborah. O tutor precisa estar ao lado do animal durante todo o tempo de trabalho no set.


Sopão de raças
Conhecido tecnicamente como SRD (sigla para “sem raça definida”), o vira-lata vem de uma mistura de raças e, por causa disso, fica difícil prever características físicas ou comportamentais de uma linhagem. Porém, dá para afirmar, segundo o professor do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Lavras (Ufla) Carlos Artur Lopes Leite, que sua saúde é mais vigorosa.

— Como são um sopão de raças, acabam diluindo genes que expressam algumas doenças e ficam mais resistentes — diz o médico veterinário. — O tempo de vida também é maior.

É esse vigor que a artista plástica Dolores Eso cita ao telefone, na véspera de embarcar para Amsterdã. Ela estava a caminho da Holanda porque sua obra “Verde-amarelo-caramelo”, uma tela de 4,85m x 3,5 m, foi selecionada para a mostra “Brazilian soul”, no Straat Museum, o principal museu de arte urbana no mundo. Depois de 15 de outubro, quando acaba a exposição, a tela permanece no acervo da instituição.

— Quando recebi o convite, pensei: “Tema livre, museu estrangeiro olhando pra gente...”. Quis colocar meu cachorro contra o complexo de vira-lata, como outra referência de Brasil — disse a artista, que reproduziu o amigo Cosme, com ela há 10 anos, ao lado dos nacionalíssimos filtro de barro e azulejos de Athos Bucão.

O cão da pintura de Eso pode não ter pedigree. Mas vem de uma longa linhagem de obras artísticas e de entretenimento que os colocaram em destaque.

Em uma destas ocasiões, o resultado foi ameaçador, mas o final foi feliz: o pintor Paolo Veronese teve de se explicar com a Inquisição no século XVI porque incluiu cães em uma “Santa Ceia” que pintou em Veneza — o animal seria considerado pouco digno para a cena (assim como os anões, palhaços e bêbados da composição). A defesa que fez da obra ficou na História como um marco na defesa da liberdade criativa dos artistas.

As autoridades de hoje são mais compreensivas com o status dos cães, inclusive os vira-latas. Desde 2023, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de Felipe Becari (União/SP) que reconhece a expressão vira-lata caramelo como manifestação cultural imaterial. Algumas prefeituras, como a de Viçosa (MG) já distinguem esses ilustres cidadãos como símbolo. Carlos Artur Lopes Leite, professor do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Lavras e psicólogo, dá sua explicação para essa idolatria.

— Cada vez mais precisamos de ícones e heróis para suportar a realidade e as dificuldades que passamos. O vira-lata caramelo faz esse papel. E a resistência, a resiliência e a adaptabilidade ao meio nos lembram daquela famosa frase: “o brasileiro não desiste nunca” — explica Carlos Artur.

Apesar de aparentemente estarem bem na foto, a realidade anda meio borrada para organizações que cuidam de animais. Marcelo Marques, presidente da Suipa, que acolhe bichos abandonados desde os anos 1940 no Rio, faz as contas: há, hoje, cerca de 900 cães abrigados na instituição, e destes, 95% devem ser vira-latas. A adoção está aquém do necessário.

— No início da pandemia, houve um boom, bem significativo — diz ele. — Agora começamos a notar que o número de abandonos aumentou e o de adoção teve uma decaída. Suspeito que por questões financeiras.

Os voluntários do perfil Adoção Responsável RJ (@adocaocarioca) também sentem dificuldade em encontrar tutores para esses bichinhos.

— Infelizmente, os caramelos e os pretos são os menos procurados — diz Tatiana Verena, salientando que esses demoram mais tempo para conseguir um lar do que os de raça. — A maioria procura porte pequeno, branquinho, peludinho.

O diretor e roteirista de “Caramelo”, Diego Freitas, nunca foi assim: sempre teve “cinco, seis vira-latas”. Foi a caramelo Paçoca, que está com ele há cinco anos, a musa inspiradora do filme.

— Eu a vi no Instagram, abandonada num terreno baldio, numa caixa de papelão — conta Freitas, com Paçoca passando atrás da câmera do Zoom, durante entrevista. — Esses bichos representam a gente: misturados, sem raça específica, mas valentes, corajosos, amorosos. Nós brasileiros somos sobreviventes e os vira-latas caramelos também.