opinião

A essência da carnificina em discursos pacifistas

Não trato aqui das palavras anti-heroicas de um certo personagem do universo da Marvel, chamado - por esse nome nada harmonioso - de Canificina. Nem muito menos trato também de me referir ao texto de Yasmina Reza, traduzido como peça teatral assinada por Polanski, intitulado "O Deus da Carnificina". Portanto, não validem aqui as maldosas artimanhas do personagem de uma animação infanto-juvenil. Tanto quanto, as intrigas de um comportamento fragilizado, que advém de improváveis relações humanas civilizadas. 

Por suposto, atenho-me à estupidez de um outro meio de se fazer "teatro", de certo modo animado por heroísmos excêntricos, muito bem produzidos para servirem de ilustração à soberba de lideres narcisistas. Foi assim que assisti, num misto de incredulidade e desconfiança, ao ridiculo espetáculo de supremacismo nacionalista, que foi anunciado, descaradamente, como uma festa pacifista. De forma literal, senti-me um trouxa a mais, capaz de emocionalmente, deparar-se diante da condição de contar com a frustração das suas mínimas expectativas.

De fato, esse armistício ou cessar fogo não tem nenhuma dimensão por resgatar como uma marca realista, que mereça ser tratada como consagração da paz. Soou para mim como uma atitude muito bem elaborada, em forma de marketing político, simplesmente, desenhada para massagear o ego de um líder e fazê-lo como um pacifista. Por mais que contrarie esse rótulo, haja vista tantas demonstrações espontâneas evidenciadas ao contrário.

Em primeiro plano, é evidente que se deva reconhecer o mérito da trégua, mesmo como passo inicial de uma desconhecida estratégia dita como acordo de paz. A propósito, houve o que comemorar, porque as cenas do retorno dos reféns israelenses e dos atônitos moradores de uma Gaza destruída, foram mesmo dignas de comoção. Mas, desses registros ter um entendimento claro sobre o fim da guerra e do terror, parece-me um anúncio recheado pela ingenuidade política. Penso que qualquer análise simplista daquele feito, tende a aceitar que se produziu um evidente espetáculo midiático. Para entendê-lo assim, bastam alguns notórios argumentos, que sequer foram relativizados, como bem deveriam. Permito-me aqui destacar alguns deles.

De imediato, a pergunta que não quis sair calada daquele contexto. Acordo sem os adversários representantes, numa espécie de cara a cara, sem garantia efetiva de desarmamentos e de solução para o reconhecimento do Estado Palestino faz algum sentido lógico? Como falar de uma situação pacificada sem que se apresente um plano de recuperação e efetivo soerguimento de uma Gaza destruída econômica e fisicamente? Até quando a presença de Israel se sustentará forte, tanto em Gaza, como na Cisjordânia? Sem clareza nas respostas para essas questões, há um enorme vácuo para a pacificação, verdadeiramente, definitiva, tal e qual o líder fez questão de vociferar?

Quando me refiro, então,  à estupidez desse espetáculo midiático não me atenho apenas aos questionamentos anteriores. Afinal, até onde posso crer na iniciativa pacifista, quando o protagonista de todo marketing extravasa, pública e abertamente, seus mais íntimos sentimentos belicistas? E, para ilustrar essa verdade, é suficiente lembrar que, no próprio discurso, sua soberba fez questão de dizer que uma "Secretaria de Guerra representou uma decisão, politicamente, correta". E, que "mais aeronaves de combate", à semelhança daquelas usadas contra o Irã, foram encomendadas para fortalecer sua flotilha. Além disso, que "as forças armadas do seu país foram objeto de amplo investimento", tão somente para fazer frente às iniciativas que exijam uma intervenção de guerra. 

Apesar do fio de esperança que, nessas horas, sempre toma conta da humanidade, até em meras circunstâncias de armistício, com todo o repertório exposto, caberia mesmo estufar o peito, evidenciar o topete   e bradar que a paz foi estabelecida?  Apesar da oportunidade perdida, deu para notar que a arrogância perdeu o voo e chegou atrasada por uma semana, diante daquela velha predisposição do líder, em ser laureado com o Nobel da Paz. Mas, o regozijo de um ofício de"pavonismo universal" prevaleceu do mesmo jeito. E deu aquele colorido especial a mais um show de mídia, à moda dos seu velho "reality" da TV.

Porém, no meu discreto olhar, o realismo que o mundo esperava - e continua ainda por esperar - tem muito a ver com uma proposta pacifista genérica e completa. Sem arrodeios sorrateiros. Sem olhares em via única. Sem as figurações de um carnificismo implícito, animado, teatral ou escrito, trajado como discurso pacifista. Afinal, não creio e nem aposto em pilotos, que com um "joystick" em mãos, conduz o mundo de um jeito tal, como se estivesse diante de um simples "play station". Pacifismo é para humanistas assumidos, que saibam lidar com situações ásperas e complexas. Ou até pior, mexer com urânio enriquecido, para que se evite a catástrofe. 
 



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