O carbono invisível sob nossos pés
Às vésperas da COP30, o Brasil vive um momento decisivo para reposicionar sua matriz energética e reafirmar sua liderança mundial na transição para uma economia de baixo carbono. E a chave para isso pode estar, literalmente, sob nossos pés. O debate sobre descarbonização não se limita à geração de energia limpa - envolve compreender o ciclo completo das emissões, com atenção especial ao carbono do solo, protagonista invisível que ainda não recebeu o devido reconhecimento.
O Brasil já se posicionou na vanguarda mundial ao eleger no Programa Nacional dos Biocombustíveis (RenovaBio), no Programa Mover, e na Lei Combustível do Futuro a Avaliação do Ciclo de Vida, também conhecida como critério “berço-ao-túmulo”, como métrica para definir o que deve ser considerado sustentável. A quase totalidade dos demais países ainda utiliza o limitado e parcial critério denominado “tanque-a-roda”, que leva em conta apenas emissões de cano de escape, com resultados pouco eficazes para o controle do aquecimento global. A adoção geral da avaliação do ciclo de vida poderá ser uma agenda relevante a ser destravada na COP30. Mas mesmo no Brasil, ainda podemos avançar mais.
Estudos da Embrapa e de centros internacionais de pesquisa mostram que as raízes da cana-de-açúcar e a palhada que permanece após a colheita formam um estoque natural de carbono capaz de capturar e armazenar volumes significativos de CO, muitas vezes superiores aos de florestas jovens ou de sistemas de pastagem. Essa reserva subterrânea é uma das maiores forças da agricultura tropical brasileira - mas sua relevância ainda não é plenamente capturada pelas metodologias oficiais de mensuração de emissões, como a RenovaCalc, que baliza o RenovaBio e o mercado de créditos de descarbonização (CBIOs).
O reconhecimento científico desse carbono é mais do que um ajuste técnico: é uma mudança de paradigma. Ao incorporar o estoque de carbono do solo, o Brasil não apenas demonstra com maior precisão os ganhos ambientais de seus biocombustíveis, mas fortalece a competitividade do etanol e da biomassa frente às fontes intermitentes - eólica e solar - que hoje concentram os incentivos públicos e a atenção dos investidores.
Essas fontes têm papel relevante na matriz elétrica, mas enfrentam desafios de estabilidade e custo oculto. A intermitência exige baterias e sistemas de armazenamento que, quando considerados em todo o ciclo de vida, aumentam substancialmente as emissões líquidas e o custo da energia. Além disso, o avanço da geração solar e eólica tem provocado o fenômeno do curtailment - a produção de energia em excesso nos horários de baixa demanda, cujo custo tende a ser repassado ao consumidor.
A biomassa, ao contrário, oferece modulação diária - ou seja, energia firme, capaz de ajustar sua oferta conforme a demanda, garantindo estabilidade ao sistema elétrico e dispensando o uso de baterias e outros sistemas de armazenamento de alto custo ambiental e econômico. É uma fonte renovável que gera emprego no interior, aproveita resíduos agrícolas e atua como sumidouro de carbono, especialmente quando se considera o potencial de captura do solo. A energia de biomassa gerada em período complementar à hidráulica, tem gerado relevante economia e eficiência ao sistema elétrico interligado ao viabilizar o armazenamento de água nos reservatórios, fazendo com que se transformem em virtuais baterias sem custo adicional.
Nesse contexto, é essencial que o Poder Executivo institua, antes da COP30, um grupo de trabalho interinstitucional, com a participação do Ministério de Minas e Energia, da ANP, do MAPA e da Embrapa, para atualizar as metodologias oficiais de contabilização de emissões e incorporar o estoque de carbono do solo à RenovaCalc. Essa atualização permitirá que o Brasil apresente ao mundo uma métrica mais fiel à realidade do etanol e da biomassa, consolidando seu protagonismo na transição energética global.
Ao impulsionar a transição energética, o agro brasileiro confirma que desenvolvimento e sustentabilidade podem caminhar juntos. É um setor que alia produtividade, segurança alimentar e captura de carbono alavancando cadeias produtivas de alimento e energia. Seus sistemas integrados - baseados na cana, no milho e na soja - agregam valor ao produto primário, produzem energia limpa, ração e proteína sem ampliar fronteiras agrícolas. Ao contrário, a intensificação da pecuária pelo uso de coprodutos gerados pela produção de biocombustíveis tem reduzido o período de terminação do gado bovino e, portanto, emissões de metano. O Brasil é, assim, o raro exemplo de país que alimenta o mundo enquanto contribui para resfriá-lo.
O momento é de convergência. A ciência já mostrou o caminho; cabe agora à política e ao setor produtivo atualizarem as métricas, consolidando o solo como ativo climático. O carbono que está debaixo dos nossos pés pode ser o argumento mais poderoso do Brasil no novo ciclo verde global.
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*Presidente da DATAGRO
**Chefe de Gabinete do Senador Fernando Farias (MDB-AL)
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