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A história do preso que espera justiça em Guantánamo há duas décadas

Acusado de matar 17 pessoas com uma bomba contra o contratorpedeiro USS Cole, Abdul Rahim al-Nashiri preso desde 2006, alega em audiência ter sofrido torturas nas mãos da CIA

Protesto contra a base naval de Guantánamo Protesto contra a base naval de Guantánamo  - Foto: AFP

O Campo Justiça, na base naval americana de Guantánamo, na ilha de Cuba, é cercado por arame farpado e torres, e só quem tem credenciamento especial tem acesso ao local.

Ali ficam as "comissões militares", os tribunais particulares criados em 2006 pelo governo de George W. Bush, onde os "combatentes inimigos" não têm as garantias que a Convenção de Genebra concede aos prisioneiros de guerra.

Um universo onde os suspeitos de alguns dos piores ataques deste século esperam há duas décadas que seu caso seja levado a julgamento.

É ali que, nos últimos seis meses, o caso de Abdul Rahim al-Nashiri, acusado de realizar o ataque ao contratorpedeiro USS Cole em 2000 na costa do Iêmen — no qual morreram 17 militares americanos com idades entre 19 e 35 anos —, está sendo examinado em uma série de audiências preliminares. Se condenado, al-Nashiri enfrentará a pena de morte.

Isso se for a julgamento: o caso deste saudita de ascendência iemenita, agora com 58 anos, está nos tribunais desde a sua primeira audiência preliminar em 2011. O Grupo de Trabalho da ONU sobre Detenção Arbitrária considera que "seus direitos a um julgamento justo e ao devido processo foram repetidamente violados em Guantánamo".

Al-Nashiri foi capturado nos Emirados Árabes Unidos e entregue à CIA em 2002, que o fez desaparecer durante quatro anos nos seus chamados “buracos negros” no Afeganistão, Tailândia, Marrocos, Polônia, Lituânia e Roménia. Para que revelasse as informações sobre o ataque, foi submetido a todo tipo de tortura psicológica e física: simulações de afogamento, posturas dolorosas, privação de sono e execução simulada. Também ouviu ameaças de estupro a sua mãe diante de seus olhos e sofreu violações sexuais. Até que em 2006 foi finalmente transferido para Guantánamo; em 2011 teve início o atual processo judicial.
 

O caso, no entanto, foi complicado por problemas típicos desse sistema judiciário atípico. Os advogados militares mudam com frequência, tanto os de defesa quanto os de acusação, e os recém-chegados precisam de tempo para entender os intrincados detalhes do processo. A obrigatoriedade de realização das audiências no Campo Justiça dificulta o deslocamento de testemunhas, juristas e observadores, que, para participar das audiências, devem se adaptar ao único voo disponível, um fretado militar que parte de Washington uma vez por semana . O curso das audiências é frequentemente interrompido para discutir um assunto em que informações sigilosas são tratadas a portas fechadas.

Um advogado de defesa dos presos adverte antes de ir para a base:

— Se o que você vê no tribunal lhe parece sem sentido, é porque é mesmo. É um sistema criado para confundir e impedir que as coisas fiquem claras, não para fornecer julgamentos justos.

O Campo Justiça é um lugar áspero e empoeirado de quartéis pré-fabricados, com mensagens de “proibido fotografar” nas paredes, cercado por cercas de arame farpado sob um sol escaldante. Ele literalmente impõe sua própria lei: as comissões militares usam uma mistura peculiar de lei criminal dos EUA e suas cortes marciais, criadas sob o princípio duvidoso de que as pessoas processadas ali não têm direitos e não estão em território americano. Logo, não podem se beneficiar das garantias judiciais que receberiam nos EUA. O sistema aceita como válidos, por exemplo, testemunhos de fontes, se os considerar confiáveis.

É um universo onde tudo parece provisório e precário —o centro de imprensa instalado em um antigo hangar, o quartel que abriga o cavernoso tribunal— mas que se tornou permanente. O terreno jurídico inexplorado em que se movem as comissões militares, os apelos contínuos e a polêmica sobre o passado de tortura na prisão arrastaram ainda mais os julgamentos pendentes.

Em uma declaração de otimismo, um novo tribunal e 162 pequenas unidades pré-fabricadas estão sendo construídos, abrigando advogados, testemunhas e jurados dos julgamentos futuros. Suas portas amarelas — e a bandeira americana, escoltada por outras militares — oferecem o único toque de cor do recinto.

Particularidades do caso
O caso de al-Nashiri tem ainda outras particulares. Já passaram por ele três juízes e o atual, Lanny Acosta, se aposentará das Forças Armadas em 30 de setembro, forçando a provavelmente mais atrasos. Ele já acumula alguns, e longos: dois anos de julgamentos do caso tiveram que ser anulados e recomeçados quando um tribunal superior decidiu que um dos juízes anteriores tinha conflito de interesses.

Em uma audiência preliminar, na semana passada, a validade de uma série de provas incriminatórias e testemunhos contra al-Nashiri foi decidida. Entre elas, uma confissão feita pelo réu em 2007, já em Guantánamo e perante uma equipe de interrogadores não envolvidos em incidentes de tortura. A defesa, chefiada pelo advogado Anthony Natale, pediu que o depoimento não fosse aceito e argumentou que seu cliente admitiu a culpa condicionado pela lembrança da tortura a que foi submetido por quatro anos e que um médico descreveu como "um dos indivíduos mais severamente traumatizado" que ele tinha visto, depois de examiná-lo em 2012.

Para sustentar suas teses, o advogado citou ao longo da audiência um ex-pesquisador em Guantánamo da rede terrorista al-Qaeda e um psicólogo que participou dos maus-tratos contra al-Nashiri e que mostrou graficamente algumas das práticas nesses “interrogatórios intensificados”.

A acusação, liderada pelo advogado Michael O'Sullivan, sustenta que o arguido era perfeitamente competente quando se acusou ao longo de três dias de depoimentos diante da equipe "limpa" — que não tinha participado dos maus-tratos.

— Não foi uma confissão de 15 ou 20 minutos, foi a longa narrativa de uma vida inteira — diz o promotor Ed Ryan.

A defensora Annie Morgan destaca, por seu lado, que o arguido tinha sido submetido a cerca de 200 interrogatórios antes de ficar a cargo da chamada “equipe limpa” de investigadores.

Quase não havia pessoas no Campo Justiça naquela semana: três representantes de ONGs, três jornalistas e um casal de representantes das vítimas de 23 anos atrás a bordo do USS Cole: o pai de um dos mortos e um dos tripulantes. Embora outros possam acompanhar a vista à distância de Norfolk, no estado da Virgínia, do Pentágono ou de uma sala montada em outra base militar, cada vez menos observadores vão testemunhar os procedimentos. Um testemunho do semi-esquecimento em que caiu aquela que já foi uma das prisões mais infames do mundo.

Em nenhum momento o réu compareceu ao tribunal durante esta terceira e última semana do processo. Ele prefere, explica seu advogado, observar os procedimentos de outro local seguro. Al-Nashiri sofre de vertigens graves que, juntamente com as rigorosas medidas de segurança, dificultam a sua transferência.

Quem o viu diz que ele é um homem baixinho, mede 1,67 metro e amante da música pop — é fã de Dua Lipa — o que o ajudou a aprender para se comunicar em inglês. Ao contrário de outros presos, não é religioso, abraça seus defensores e não tem problemas com as funcionárias da prisão.

Ao encerrar a última sessão, o desembargador Acosta não descarta a possibilidade de iniciar o julgamento de al-Nashiri em agosto, mas alerta que se trata de algo "altamente ambicioso". Ele decidirá sobre os recursos, provavelmente, em algumas semanas:

— Isto é Guantánamo, duas semanas é rápido — diz ele ironicamente.

Promotores e advogados se preparam para pegar o voo de volta. Talvez eles voltem em um mês, talvez não.

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