A morte do filho pela tv
Entrevista/ Tádzia Negromonte - Psicóloga, ex-coordenadora do Ceav, onde atuou até início de 2015
Entendo, mas não tenho paciência de esperar muito. Eu sinto uma força tão grande de vocês aqui. Quando eu chego lá, não é assim .
“Quando meu menino foi preso, eu fiquei doida. Falei com um vereador e ele disse que eu não vendesse minha casa pra soltar meu filho, que ele não ia sair assim. Tinha sido preso em flagrante. Aí eu disse: não, mas eu vou vender e vou tirar meu filho. Arrumei um ‘adevogado’ que pediu R$ 5 mil. Eu disse: R$ 5 mil não tenho, que minha casa assim, ligeiro, não pego esse dinheiro. Era só metade da casa, que a outra metade eu já tinha vendido. Vendi por R$ 2,6 mil e dei ao ‘adevogado’, que só foi no Cotel uma vez e acabou-se. Perdi o dinheiro, perdi tudo. E Douglas continuou preso”. O menino foi morto. A mãe ficou sabendo pelo noticiário na televisão.
Se a vida caleja, Vitória sabe bem disso. Tem em torno de 45 anos e fala rude. Trata da dor como quem conta qualquer coisa, com uma normalidade que assusta. Mora em uma comunidade de morro, de onde se tem uma vista larga. Ao longe, os prédios altos do Recife parecem só cenário. É uma segunda-feira de dia limpo e o Ceav chega com uma notícia ruim: o exame para reconhecimento do corpo de Douglas não pôde ser feito porque o “material” foi insuficiente. É preciso fazer outra exumação, que Vitória tem que autorizar e acompanhar. Assim, o menino deixará de ser outro indigente. Douglas foi morto durante o “ofício”, três meses depois de sair da cadeia. Assaltando o ônibus de costume, com o comparsa de sempre. Deu azar de encontrar seu algoz, que o pôs de joelhos antes de morrer. “Tanto que eu falava. Se tivesse condições, tinha tirado ele daqui, tá entendendo? Ele não teria essa amizade, não tinha morrido. Ele já tava trabalhando, ganhando o trocadinho dele. Pra ele mesmo, porque eu não queria nada dele”, diz a mãe. Ela, para ela, não quer nada mesmo. Trabalha há mais de uma década para o mesmo patrão, como doméstica. Recebe R$ 100 por semana. - Mas a senhora tem direito a carteira assinada, interrompo. “É, filha, mas não quero confusão não. Estou tentando ir todo dia só para ter a alimentação certa”.
Ela volta ao assunto. “O meu menino que ajoelhou, foi o último que morreu. Ele ficou assim ó (põe as duas mãos na nuca)”, narra. “Mas ele estava roubando, né. Estava com a faca”, sentencia ela mesma. Douglas levou tiro na cabeça, mas ela não sabe quantos. O caso ainda está sendo investigado. Hoje, o Ceav perdeu contato com a usuária.
Vitória dormia quando avisaram que a TV tinha dado o nome do comparsa. Saiu voando para procurar Douglas. “Fui ao hospital e disseram: ‘não chegou nenhum baleado aqui vivo não. Chegou um aqui em óbito já’. Aí eu disse: me ‘amostre’ esse que chegou em óbito. Quando abri o saco que olhei: pronto, é ele mesmo. Mas do jeito que mataram ele, ele estava. ‘Óia’, tudo arrancado os ‘samboque’ aqui, todo arranhado”. É o único momento que Vitória chora, baixando a cabeça, como se tivesse vergonha das próprias lágrimas.
Sem casa, ela vive com uma sobrinha do ex-marido. Não tem qualquer perspectiva, mas parece não se importar com isso. Pergunto o que ela mais gosta na vida, e ela diz que namora um rapaz de 20 e poucos anos, e que é ele quem a mantém de pé. “É a sorte, visse? Se não eu ia cair na cachaça e ia desgraçar o restinho da minha vida”.
Apoiada na fala sem pudores daquela mãe, pergunto: a senhora lembra o que sentiu quando viu aquela notícia na televisão? Vitória me olha fixamente, e com um tom abaixo, responde: “Até hoje eu ainda não sei, tu acredita? Parece sonho”. Abaixa a vista, entrelaça os dedos, e dispara: “é assim mesmo. E ‘tu vê’, eu abri o saco e vi ele assim, cheio de sangue, ‘os miolo’ tudo pra fora, e disse: tá vendo, meu filho, tanto que sua mãe avisou”. Vitória enxuga o rosto com as costas das mãos e continua. “Com certeza, na hora que ele viu o outro matando o colega dele, ele se lembrou de tudo o que eu disse. ‘Esse teu amigo te levou pro presídio, né? Se tu for na onda dele, tu não volta pro presídio mais não, vai é comer terra na cara.’ Foi dito e feito”.
Pela crueza do relato, o psicólogo do Ceav, Josimar, intervém. - “Mas a senhora entende que, enquanto mãe, fez a sua parte”. “Fiz tudo, tudo, tudo, tudo. A escolha foi dele. Isso é o que me conforta mais, ‘esse menino’. E a gente sente muito porque é um ser humano, porque é filho, mas tá errado. E muito. Se quisesse roubar, fosse roubar um banco. Ou ganhava muito, ou se lascava. Mas roubar quem não tem? Celular? É errado demais”. Nessa lucidez rústica, planta-se um silêncio.
Estamos sentados num batente da porta da sala; Vitória, no encosto do sofá à nossa frente. Pergunto se ela sabe o que a equipe do Ceav faz ali. “Sei, vem me dar força”, responde. - E o que a senhora entende o que é um direito? Quando eles dizem que a senhora tem direito a ter a morte do seu filho atestada? “Entendo, mas não tenho paciência de esperar muito. Eu sinto uma força tão grande de vocês aqui. Vocês dizem que é assim, assim, assim. Quando eu chego lá, não é assim. A vontade que tenho é de voltar, mas desistir, não”.
Quando criança, Vitória quis ser bailarina. Achava bonito. “Mas depois caí nas drogas, com 14 anos, e só parei quando engravidei do meu primeiro filho, porque ou parava, ou morria no pau”. Criou as crias, e ao perceber que elas estavam “desandando”, decidiu voltar a se drogar. “Prejudica porque você não quer mais nada da vida, mas eu me virava. Quando precisava, arrumava um namorado velho, e vivia. Nunca roubei, nunca matei, a única coisa que eu fazia mesmo era fumar uma maconhazinha. E fumo só. Nunca gostei de patota. É amizade que lasca”.