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Alimentado por desconhecimento, temor de coronavírus repete histórico de epidemias

Desinformação acerca da epidemia provoca onda de xenofobia racial sobre os chineses e outros povos asiáticos

Pedestre se protege com máscara e sacola plástica nas ruas de WuhanPedestre se protege com máscara e sacola plástica nas ruas de Wuhan - Foto: STR / AFP

Epidemias provocam medo, especialmente quando causadas por um novo patógeno, como o coronavírus. Muitos desses temores, porém, não têm base na ciência ou na saúde. Eles se ancoram no medo do desconhecido e, não raro, expõem uma profunda xenofobia.

O comportamento é recorrente na história das epidemias. Durante o século 15, a peste negra, ou peste bubônica, a maior da história, matou quase um terço da população europeia e em outras regiões do mundo. A doença é causada por uma bactéria que atinge roedores e transmitida por meio das pulgas.

À época, o bode expiatório foi o povo judeu. No auge da pandemia no continente europeu, entre 1348 e 1351, mais de 200 comunidades judaicas foram erradicadas, acusadas de difundir a doença ou envenenar postos.

Na gripe suína de 2009, quem levou injustamente a culpa foram os mexicanos. Políticos dos EUA chegaram a propor o fechamento da fronteira com o México. Agora, a onda de xenofobia racial é sobre os chineses e outros povos asiáticos, que vem sofrendo ataques em várias regiões do mundo, inclusive no Brasil.

Segundo Deisy Ventura, coordenadora do doutorado em saúde global da Faculdade de Saúde Pública da USP, a história das epidemias mostra que diante da dificuldade de as pessoas lidarem com o inexplicável ou com o que lhes parece injusto, há sempre uma necessidade de nomear culpados, invariavelmente os estrangeiros. "A xenofobia é uma das formas de explicar o inexplicável."

Ventura diz que também existe uma tentativa de buscar razões morais que expliquem o adoecimento e culpar a pessoa pelo mal que a acometeu. Com isso, supostamente é possível temer menos que aquilo possa a vir acontecer. "Os culpados serão sempre aqueles que não estão bem integrados à comunidade, pessoas de outras nacionalidades. Aproveita-se de determinadas características atribuídas a uma nacionalidade, a um povo, e faz com que elas se voltem contra essas pessoas, responsabilizando-as pela doença."

Isso explica em parte porque as pessoas parecem se importar menos com as doenças que realmente representam um risco para suas vidas, como as cardiovasculares, as que mais matam os brasileiros, ou mesmo as que causam epidemias frequentes, como a dengue e a febre amarela.

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"Encarnamos a ideia de que se for uma doença que já está entre nós, tudo bem, tudo normal. A ameaça, a fonte dos nossos problemas, é o exterior. A gente acha que o conflito só existe porque vem alguém de fora perturbar a nossa paz e a harmonia. Assim, ficamos expostos aos efeitos de uma epidemia imaginária", diz o psicanalista Christian Dunker, professor da USP.

Para ele, as epidemias têm o poder de ativar um conjunto de medos que estão já estão postos nas sociedades e encontram na "peste" uma espécie de materialização.
"Há uma atmosfera que nos envolve de coisas que a gente não comanda, como o tempo e o clima. As epidemias pegam carona na nossa sensibilidade para esse tipo de atmosfera, você não consegue colocar uma porta do tipo: para lá a coisa fica, para cá ela não vem", diz.

O fato de a epidemia de coronavírus ter o potencial de afetar qualquer um, inclusive médicos, e ainda haver muitas perguntas sem respostas (como a sua real taxa de letalidade) também colabora para a insegurança. "Se eu for infectado e for para um hospital, vou me curar? O fato de a ciência e a medicina ainda não saber certas coisas reforça essa ideia de algo que vai chegar e se infiltrar nas nossas vidas", afirma Dunker.

O psicólogo Frederico Eckschmidt, epidemiologista pela Faculdade de Medicina da USP, diz que o medo do coronavírus se alimenta de fatos em parte reais, em parte imaginários. "Primeiramente o indivíduo percebe que o outro está doente e imagina que há risco de contágio e sofrimento. Sua percepção de risco ativa áreas neurológicas mais primitivas, como o corpo amigdalóide e o sistema límbico."

Da perspectiva do cérebro, a amígdala é amplamente responsável pelo aprendizado do medo, um processo pelo qual as respostas do medo se apegam a pistas anteriormente neutras que agora são vistas como algo ameaçador. Isso explica respostas emocionais temerosas a um espirro em um metrô lotado, que antes poderia passar despercebido.

Eckschmidt explica que quanto mais fortes as reações emocionais menos funciona o córtex pré-frontal, que vai ajudar no julgamento e racionalização do problema. "A falta de formação científica e a exploração da mídia se encarrega do imaginário. Inicia-se o fenômeno de massas que leva as pessoas a irem em multidões comprar medicamentos, ou no caso do coronavírus, máscaras, e a se comportar no modo de fuga e esquiva", diz Eckschmidt.

Nessas horas, diz o psicólogo, não adianta falar que os riscos da infecção são baixos comparados a outros inúmeros cotidianos muito piores."Nesse ponto, a histeria coletiva já tomou conta do imaginário individual e coletivo."

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