Após chuvas de 2011, prefeituras da Região Serrana usaram só 50% dos recursos disponibilizados
Até o início da manhã desta quinta, mais de cem mortes já foram confirmadas pelas equipes de busca, e não se consegue sequer estimar quantos são os desaparecidos
Quando o dia amanheceu na quarta-feira, ficou mais evidente a dimensão de uma tragédia que se repetia. Numa Petrópolis devastada e tomada pela lama, a toda hora equipes de resgate encontravam corpos de vítimas do temporal de terça-feira, o maior na Cidade Imperial desde 1932, ano que iniciaram as medições: são 104 mortes confirmadas até o início desta manhã, e não se consegue sequer estimar quantos são os desaparecidos. A tragédia trouxe lembranças de outro momento: as chuvas de 2011, quando 71 pessoas morreram em Petrópolis e 918 quando acrescidas as cidades de Terresópolis e Nova Friburgo. Nessa época, o governo federal disponibilizou R$ 2,7 bilhões para as prefeituras da Região Serrana, mas apenas cerca da metade foi usada. Além disso, o governo do Rio gastou R$ 7,6 milhões ano passado na rubrica Recuperação da Região Serrana, o que representa 24% da dotação inicial no orçamento.
De olho no céu, porque há perigo de mais chuva, e à procura de parentes, muitos moradores peregrinam pelo Instituto Médico-Legal (IML) e por ruas repletas de destroços e carros empilhados. Outros tentam encontrar sobreviventes, às vezes com pás e baldes nas mãos, nos escombros espalhados por 89 áreas atingidas, 26 delas por deslizamentos. Embora ainda não pareça ser um balanço final da calamidade, o número de mortes no município já supera o da enxurrada de 2011 — o maior desastre natural recente do Brasil —, quando 71 pessoas morreram em Petrópolis, num total de mais de 900 vítimas em toda a Região Serrana.
A diferença é que, 11 anos atrás, o lugar mais atingido tinha sido o Vale do Cuiabá, no distrito de Itaipava. Desta vez, a destruição se concentrou no primeiro distrito, em regiões como o Centro Histórico e bairros como o Alto da Serra e o Quitandinha, que estiveram entre os mais afetados em chuvas ainda mais antigas, de fevereiro de 1988, quando pelo menos 134 pessoas tiveram suas vidas ceifadas.
Só no Morro da Oficina, no Alto da Serra, um deslizamento carregou ao menos 54 casas. No mesmo lugar, em 1988, também houve escorregamentos, e quatro socorristas morreram soterrados quando a encosta em que trabalhavam desabou. Nessas mais de três décadas, o que tampouco mudou foi a ocupação desordenada. Em 1990, um estudo identificou 66 áreas de alto risco na região central. Pós-tragédia de 2011, a prefeitura elaborou um Plano de Redução de Risco (PMRR).
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Os dados apresentados em 2017 apontavam que, em todo o município, 234 locais eram considerados como de risco alto ou muito alto para deslizamentos, enchentes e inundações (sendo 102 apenas no primeiro distrito). Nessas regiões, havia ao menos 20,5 mil moradias, e se recomendava o reassentamento de 7.177 famílias. Num desdobramento do plano, documento da prefeitura reconhece que, no primeiro distrito e em parte do segundo, há tendência de adensamento, principalmente informal, nas encostas, com a “verticalização das construções”.
Em muitos terrenos, aponta, a expansão “acaba só sendo limitada pelos afloramentos rochosos que, via de regra, são áreas com perigo alto e muito alto de queda de blocos, deslizamentos superficiais ou até eventos extremos como avalanches de rocha”. A região do Morro da Oficina está na lista do PMRR, entre as prioritárias para intervenções. Agora, diante de mais uma tragédia, o governador do Rio, Cláudio Castro, afirmou que pretende retirar famílias que moram em áreas de risco:
— Teremos postura corajosa e desmedida para fazer o que precisa ser feito, doa a quem doer — disse Castro, nesta quarta-feira.
Mas, no que se refere à habitação, após a tempestade de 2011, o estado previu construir 7.235 domicílios nos municípios prejudicados. Até agora, foram entregues 4.219. Em setembro do ano passado, novas promessas foram feitas. No lançamento do Programa Casa da Gente, o governo anunciou mais 1.088 moradias na Região Serrana, 340 delas em Petrópolis, nas localidades de Mosela, Itaipava/ Benfica e Vale do Cuiabá. “A Secretaria de Infraestrutura fará ainda um novo estudo para a identificação de terrenos eunidades”, afirma o estado.
Além da construção de moradias, outras obras esperadas há mais de uma década não ficaram prontas. No Vale do Cuiabá, por exemplo, intervenções de controle de inundações, drenagem e recuperação ambiental na calha de rios pararam em 2014, e só foram retomadas no ano passado. Em toda a Serra, cerca apenas de 50% dos R$ 2,27 bilhões disponibilizados pelo antigo Ministério das Cidades, hoje Ministério do Desenvolvimento Regional, para a recuperação da região após as enchentes foram utilizados pelas prefeituras. A informação foi repassada por Wolnei Wolf Barreiros, coordenador-geral de Prevenção e Programas Estratégicos do ministério, durante um seminário nesta quarta-feira.
O professor de Engenharia Geotécnica da Coppe/UFRJ Maurício Ehrlich, que participou do encontro, reiterou que, somada às intervenções não realizadas, a ocupação das encostas ajuda a explicar o caos.
— A cidade continua avançar por espaços que não deveriam ser ocupados — diz ele, ressaltando que as prefeituras têm dificuldades para cumprir etapas para realizar as obras. — Esses recursos são administrados pela Caixa Econômica. E há uma série de exigências em termos de projetos e planejamento. Muitas prefeituras têm dificuldades.
Já o governo do estado afirma que, desde 2011, foram gastos, entre recursos da União e próprios, R$ 2,3 bilhões em prevenção de enchentes e deslizamentos. As ações incluem obras em 95 encostas na Serra, sendo 12 em Petrópolis, e a implantação do Sistema de Alerta e Alarme por Sirenes. No ano passado, no entanto, de acordo com dados do Portal da Transparência, o estado liquidou apenas 24% (R$ 7,6 milhões) dos R$ 31,7 milhões previstos para a recuperação da Região Serrana.
— O que a gente tem que entender é que há uma dívida histórica desde outras tragédias. Foi, sim, um caráter excepcional. Foi a maior chuva desde 1932. Unir uma tragédia histórica com um déficit que realmente existe causou esse estrago todo. Que sirva de lição para que desta vez a gente aja diferente — declarou Castro.
O governador acompanha os trabalhos de resgate em Petrópolis, que também deve receber o presidente Jair Bolsonaro.