Bombas de fragmentação: entenda debate sobre armamento no Brasil, que é fabricante e exportador
País não assinou tratado de 2008 para banir esse tipo de arma considerada incompatível com o direito humanitário por especialistas e organizações internacionais
As bombas de fragmentação (cluster bombs, em inglês), armamento que os Estados Unidos decidiram fornecer à Ucrânia, são fabricadas há anos no Brasil — que já exportou para países como Arábia Saudita e Iraque. A Coalizão contra Munições de Fragmentação (CMC, na sigla em inglês), que monitora uso e produção desses artefatos no mundo, lista 16 nações produtoras e que se recusam – assim como o Estado brasileiro — a assinar o tratado sobre proibição dessas armas.
"O Brasil sistematicamente tem uma posição de respeito ao direito humanitário. É um caso um pouco à parte, em termos da nossa relação com as normas internacionais, a posição em relação a essa convenção", afirma Mônica Herz, da PUC-Rio e presidente da Pugwash Brasil, organização internacional com foco na redução de conflitos e do uso de armas nucleares e de destruição em massa.
Quando disparadas, as bombas de fragmentação se abrem e dispersam centenas de munições menores. Essas sub-bombas explodem ao entrar em contacto com qualquer alvo, mas, quando não detonam no impacto, convertem-se em uma espécie de mina que continua a ameaçar a população civil anos depois dos conflitos. As crianças são as vítimas mais frequentes desse dano colateral.
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Em 2010, em um relatório enviado à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, o Ministério da Defesa afirmou ser “favorável ao emprego da munição de fragmentação, observando-se os cuidados para que seja utilizada contra objetivos militares, em situações de baixo risco para a população civil”, sob os termos da Convenção de Genebra e da Convenção sobre a Proibição ou Restrição do Uso de Certas Armas Convencionais que Podem Ser Consideradas Excessivamente Lesivas ou Geradoras de Efeitos Indiscriminados (CCAC) — dois dos tratados internacionais na área de segurança e defesa dos quais o Brasil é signatário.
No entanto, o país não respaldou a Convenção sobre Munições de Fragmentação (CCM) assinada por mais de 100 países para banir essas armas, em Oslo, na Noruega, em 2008. Para Herz, falta pressão sobre o governo em um tema em que os principais atores são as Forças Armadas brasileiras e os fabricantes nacionais.
"Esse uso na Ucrânia talvez estimule uma discussão nacional sobre isso", pondera Herz, que defende a importância de recuperar a lógica do direito humanitário em um país com pouca tradição de envolvimento em conflitos militares. "O direito humanitário é específico para a normatização do campo de batalha, e o pilar dele é o conceito de distinção de alvos com propósito militar da população civil. Essas armas muito claramente desrespeitam o direito humanitário, assim como armas nucleares, minas terrestres e armas químicas".
Antes da guerra na Ucrânia
No ano passado, um mês antes de explodir a guerra na Ucrânia, a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional rejeitou um projeto de lei para proibir a produção, utilização, armazenamento e comercialização de bombas de fragmentação no país. Na época, o relator, o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP), argumentou que as munições são usadas por outros exércitos da América do Sul e que a proibição delas em território nacional colocaria o Brasil em desvantagem.
"Para países como o Brasil, um argumento relevante para manter esse tipo de sistema é o contexto de desnível tecnológico de recurso militar, em que ter esse tipo de sistema de armas pode ser um nivelador de forças contra países mais avançados tecnologicamente que possuam armas inteligentes", explica o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba Augusto Teixeira, que reforça que a aquisição de produtos de defesa brasileiros por outros países não é autorizada de forma automática e o governo tem a palavra final, em um processo decisório que envolve questões políticas, logísticas, econômicas e de interesse de defesa nacional.
Questionado sobre o estoque de munição de fragmentação das Forças Armadas e sobre o fluxo de comércio da produção nacional, o Ministério da Defesa informou, em nota, que a exportação de produtos de defesa tem caráter estratégico para o Brasil e obedece à legislação vigente, inclusive no que diz respeito a cláusulas de confidencialidade dos contratos das empresas exportadoras. O Ministério disse ainda que a legislação vigente prevê que o primeiro passo para a exportação é obter a autorização para Negociação Preliminar com o Ministério de Relações Exteriores.
Também em nota, o Itamaraty disse ao jornal O Globo que o Brasil não participou das negociações da Convenção sobre Munições de Fragmentação e que apoiava que “tratativas sobre a regulação das munições “cluster” ocorressem no âmbito da Convenção sobre Certas Armas Convencionais (CCAC)”. O Ministério de Relações Exteriores vê problemas na formulação do escopo do tratado, “que exclui munições com maior grau de desenvolvimento tecnológico”. Além disso, pontua o fato de o texto ter cláusula que permite aos Estados-parte “cooperar militarmente e participar de operações” com Estados que não participam, o que entende como um desequilíbrio.
Vendas para Arábia Saudita e Irã
A CMC mantém o monitoramento do uso e produção desses armamentos no mundo. No relatório de 2022, com dados até agosto do ano passado, o Brasil aparece entre os 16 países que produzem munições de fragmentação. Pelos dados da Coalizão, o Brasil já exportou esse tipo de armamento para o Irã, o Iraque, a Malásia e a Arábia Saudita e tem três empresas produtoras em solo nacional, entre elas a Avibras Aeroespacial, produtora do foguete Astros, e a Ares Aeroespacial, fabricante do foguete FZ-100 70mm.
Em 2016, a Human Rights Watch informou ter encontrado fragmentos do Astros entre os destroços de bombardeios sauditas no Iêmen. Os mesmos foguetes já haviam sido usados contra forças iraquianas em 1991, segundo a organização, que também fotografou estoques do Astros II abandonados no Iraque em 2003. Em 2017, a Anistia Internacional respaldou novas evidências do uso de foguetes de fabricação brasileira contendo munição de fragmentação usados pelos sauditas em território iemenita. Dois civis ficaram feridos neste episódio, em Saada, o terceiro desde o ano anterior, segundo a organização.
"A Arábia Saudita permitiu o uso no Iêmen, um país paupérrimo, numa situação humanitária catastrófica. Nós temos uma responsabilidade em relação à circulação internacional das armas produzidas no Brasil", defende Herz.
Em nota, a Avibras disse ao jornal O Gçobo que, “na produção e exportação de seus produtos de Defesa, cumpre rigorosamente as legislações e os requisitos estabelecidos pelo governo Brasileiro às Empresas Estratégicas de Defesa, especialmente os acordos internacionais no âmbito da ONU dos quais o Brasil é signatário”. Sobre o incidente no Iêmen, a empresa disse que “não pode avaliar sua origem por não ter acesso aos mesmos”, mas que “as imagens dos artefatos, que esporadicamente são divulgados como produzidos pela Avibras, diferem daqueles fabricados pela empresa”.
Já a Ares Aeroespacial respondeu em nota que não fabrica bombas de fragmentação. Segundo a empresa, o foguete mencionado pela CMC era fabricado pela companhia, mas com engenharia diferente da atualmente utilizada nesse tipo de bomba.
Nos dois lados do conflito na Ucrânia
O relatório da CMC também inclui a Rússia entre os países produtores de bombas de fragmentação, que foram usadas desde o início da invasão da Ucrânia. A organização diz que, entre agosto de 2021 e agosto de 2022, o único lugar do planeta onde se registrou ataques com esse tipo de armamento foi o território ucraniano. E que Kiev também fez uso das mesmas armas contra forças russas.
Os governos de Vladimir Putin e de Volodymyr Zelensky admitiram ter usado os artefatos, que a organização registra terem sido empregados também, pelos dois lados, durante os confrontos que resultaram na anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014.
Ao anunciar o envio de bombas de fragmentação à Ucrânia, na semana passada, os Estados Unidos indicaram que a decisão foi tomada após garantias do Pentágono de que as armas foram aprimoradas para minimizar os altos riscos que representam aos civis, com uma falha de menos de 2,5% de detonação no impacto.
No entanto, declarações do próprio Departamento de Defesa indicam que essas bombas podem conter explosivos do mesmo tipo usado pelos americanos durante a Guerra do Golfo, no início da década de 1990, cuja alta taxa de insucesso — de 14% ou mais — já provocou, desde então, a morte de entre 5,5 mil até 8 mil pessoas no Iraque, em decorrência da explosão tardia dos artefatos.