Dom, 07 de Dezembro

Logo Folha de Pernambuco
GAZA

"Cidade humanitária" em Gaza seria "campo de concentração" para palestinos, diz ex-primeiro-ministro

Ehud Olmert diz que forçar as pessoas a viverem em campos seria uma limpeza étnica e que a raiva de Israel pela guerra em Gaza não se deve apenas ao antissemitismo

GazaGaza - Foto: Ramadan Abed/AFP

A "cidade humanitária" que o ministro da Defesa de Israel propôs construir sobre as ruínas de Rafah, no sul da Faixa de Gaza, seria um campo de concentração, afirmou o ex-primeiro-ministro israelense Ehud Olmert ao jornal britânico Guardian. E forçar os palestinos a entrar, acrescentou ele, seria uma limpeza étnica.

No último dia 7, o ministro Israel Katz ordenou o Exército a estabelecer uma "cidade humanitária" para abrigar, inicialmente, 600 mil pessoas e, eventualmente, toda a população — uma medida que ativistas humanitários denunciaram como parte de um plano mais amplo para a expulsão dos palestinos de suas terras.

— É um campo de concentração. Sinto muito — disse Olmert, quando questionado sobre os planos apresentados por Israel Katz na semana passada. — Uma vez lá dentro, os palestinos não teriam permissão para sair, exceto para ir a outros países.

Segundo Katz, os palestinos seriam submetidos a uma triagem de segurança ao entrar na área — uma medida para garantir que o Hamas não se infiltrasse na região — e não receberiam autorização para sair. O Exército israelense, ainda de acordo com o ministro, garantirá a segurança à distância.

Para Olmert, Israel já estava cometendo crimes de guerra em Gaza e na Cisjordânia, e a construção do campo marcaria uma escalada.

— Se eles (palestinos) forem deportados para a nova "cidade humanitária", então podemos dizer que isso faz parte de uma limpeza étnica. Essa seria a única interpretação para qualquer tentativa de criar um campo para centenas de milhares de pessoas — afirmou Olmert ao Guardian.

Na última sexta-feira, 16 especialistas israelenses em direito internacional e lei de guerra enviaram uma carta ao ministro da Defesa e ao chefe do Estado-Maior Eyal Zamir, afirmando que o plano constitui uma ordem flagrantemente ilegal, um crime de guerra e um crime contra a humanidade. "Apelamos a todas as partes relevantes para que se retirem publicamente do plano, renunciem a ele e se abstenham de executá-lo", escreveram.

De acordo com a mídia israelense, o tenente-general Eyal Zamir criticou o plano em uma reunião do gabinete de segurança. Segundo as publicações, o oficial considerou que a ideia desviava a atenção dos dois principais objetivos da guerra: eliminar o Hamas e libertar os reféns tomados pelo grupo terrorista no ataque de 7 de outubro de 2023, que desencadeou na guerra.

A ideia do projeto, apoiada pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, seria começar a construção da "cidade humanitária" — na verdade, um gigantesco campo para o confinamento de civis — durante o cessar-fogo de 60 dias que está sendo negociado com o Hamas. Prioritariamente, seriam enviados para a região as pessoas que estão na zona costeira de al-Mawasi, mas o objetivo é que todos os civis — cerca de 2,1 milhões de pessoas — sejam transferidos para o local, onde, segundo Katz, vai contar com quatro centros de distribuição de ajuda humanitária geridos por organizações internacionais.

No entanto, segundo a mídia israelense, a recusa de Israel em se retirar da área que Katz prevê para o campo é um ponto de discórdia nas frágeis negociações para o acordo de cessar-fogo.

Olmert não considera a atual campanha de Israel uma limpeza étnica porque, segundo ele, evacuar civis para protegê-los dos combates é uma medida legal para o direito internacional. Contudo, ele avalia que, após meses de retórica violenta — incluindo apelos de ministros e do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para "limpar" Gaza, transformando-a na "Riviera" do Oriente Médio, além de projetos para construir assentamentos israelenses — as alegações do governo de que a "cidade humanitária" seria destinada a proteger os palestinos não eram confiáveis.

— Quando eles constroem um acampamento onde [planejam] "limpar" mais da metade de Gaza, a compreensão da estratégia [é que] não é para salvar [os palestinos]. É para deportá-los, expulsá-los e jogá-los fora — afirmou.

No último sábado, um responsável palestino informado sobre as negociações no Catar explicou à AFP que o Hamas rejeitou essa proposta, entendendo que busca "aglomerar centenas de milhares de pessoas deslocadas em uma pequena área a oeste de Rafah", na fronteira com o Egito. Segundo a fonte, o Hamas considera a medida como uma "preparação para o deslocamento forçado para o Egito ou outros países".

"Crimes de guerra"
Olmert, que liderou Israel de 2006 a 2009, concedeu entrevista ao Guardian no dia em que foram realizados funerais na Cisjordânia, onde dois palestinos, um deles cidadão americano, foram mortos por colonos israelenses. Essas mortes ocorreram após uma campanha de intimidação violenta que forçou os moradores de várias aldeias a fugir de suas casas nos últimos dois anos.

— Os ataques foram crimes de guerra. [É] imperdoável. Inaceitável. Há operações contínuas organizadas, orquestradas da maneira mais brutal e criminosa por um grande grupo — acrescentou.

Os agressores são chamados de "jovens do topo da colina " em Israel e descritos como extremistas marginais. Olmert disse preferir o termo "atrocidades do topo da colina" para descrever os jovens cuja campanha de violência crescente foi conduzida com quase total impunidade.

— Não há como eles operarem de forma tão consistente, massiva e disseminada sem uma estrutura de apoio e proteção fornecida pelas autoridades [israelenses] nos territórios [palestinos ocupados] — disse ele.

O sofrimento extremo em Gaza, segundo Olmert, e as atrocidades dos colonos na Cisjordânia estão alimentando uma raiva crescente contra Israel, que não pode ser totalmente atribuída ao antissemitismo.

— Nos Estados Unidos, há cada vez mais manifestações de ódio contra Israel — lembrou. — Nós nos desvalorizamos dizendo: "Eles são antissemitas". Não acho que sejam apenas antissemitas, acho que muitos deles são anti-Israel por causa do que assistem na televisão e do que assistem nas redes sociais. Essa é uma reação dolorosa, mas normal, de pessoas que dizem: "Vocês cruzaram todos os limites possíveis".

Para ele, as atitudes dentro de Israel podem começar a mudar somente quando os israelenses começarem a sentir o peso da pressão internacional. Ele também criticou a mídia israelense por não noticiar a violência contra palestinos.

"Envergonhado e com coração partido"
Olmert apoiou a campanha inicial contra o Hamas após os ataques de 7 de outubro de 2023. Mas afirmou que, quando o governo israelense abandonou "publicamente e de forma brutal" as negociações para o fim permanente dos combates, chegou à conclusão de que seu país estava cometendo crimes de guerra.

Entenda como funciona indicação: Netanyahu indica Trump ao Nobel da Paz

— Envergonhado e com o coração partido por uma guerra de autodefesa ter se transformado em outra coisa. O que posso fazer para mudar essa atitude, exceto, em primeiro lugar, reconhecer esses males e, em segundo lugar, criticá-los e garantir que a opinião pública internacional saiba que existem [outras] vozes em Israel? — analisou.

Ele atribuiu o que chamou de crimes de guerra à negligência e à disposição de tolerar níveis inconcebíveis de morte e devastação, em vez de uma campanha organizada de brutalidade. Em vez disso, ele acredita que os militares ignoraram as ações que inevitavelmente "causariam a morte de um grande número de pessoas não envolvidas".

— É por isso que não posso deixar de acusar este governo de ser responsável pelos crimes de guerra cometidos — disse.

Apesar da devastação em Gaza e das tentativas por um cessar-fogo, Olmert ainda espera que uma solução dos dois Estados seja possível. Ele está trabalhando com o ex-ministro das Relações Exteriores palestino Nasser al-Kidwa para pressionar por um acordo internacional, que, segundo ele, pode estar próximo, se Netanyahu for capaz ou estiver disposto a aceitá-lo.

Em vez disso, Olmert ficou surpreso ao ver Netanyahu, um homem que tem um mandado de prisão por crimes de guerra do Tribunal Penal Internacional, indicando Donald Trump para o Prêmio Nobel da Paz.

Críticas ao plano
O plano provocou críticas e preocupações no exterior, mas também dentro dos círculos de segurança do país, que alertaram para o risco de um eventual retorno da administração israelense a este pequeno território palestino. A Agência da ONU para os Refugiados Palestinos (UNRWA) comparou esta suposta "cidade humanitária" a um "campo de concentração", assim como Olmert.

A emissora israelense TV 12 apontou que responsáveis de segurança descreveram o plano como uma simples "imensa cidade de tendas" e alertaram sobre o perigo de voltar a administrar o território do qual se retiraram em 2005.

Já o ministro britânico para o Oriente Médio, Hamish Falconer, mostrou-se "consternado" com o projeto. "O território palestino não deve ser reduzido. Os civis devem poder voltar às suas casas", escreveu na plataforma X. O Ministério das Relações Exteriores palestino declarou que "a suposta cidade humanitária não tem nada de humanitária".

'Handala' saiu de porto na Itália: Ajuda humanitária para Gaza é levada em novo barco

A iniciativa está alinhada com os objetivos dos ministros de extrema direita Bezalel Smotrich e Itamar Ben Gvir, importantes aliados da coalizão de Netanyahu, que promovem a reconstrução de assentamentos judaicos em Gaza.

Outro ponto controverso é o custo do projeto, estimado entre 10 e 20 bilhões de novos shekels (entre 16,7 e 33,4 bilhões de reais)

"Esse dinheiro não voltará", criticou no domingo, no X, o líder da oposição israelense, Yair Lapid. "Netanyahu permite que Smotrich e Ben Gvir se afundem em seus delírios extremistas apenas para preservar sua coalizão. Antes de tirar dinheiro da classe média, ele deveria acabar com a guerra e trazer de volta os reféns", afirmou. (Com AFP)

Veja também

Newsletter