Eventual cessar-fogo na Ucrânia põe Vladimir Putin em dilema; entenda
Ucrânia teme que russos usem a pausa para rearmar suas forças, mas o líder russo pode se ver obrigado a escolher entre 'objetivos' da guerra e os laços com a Casa Branca
Antes de enviar sua delegação para negociar os termos de um cessar-fogo na Ucrânia, o primeiro desde o início da invasão russa, o presidente Volodymyr Zelensky havia deixado claro que não concordava com uma pausa completa dos combates: para ele seria a chance perfeita para Moscou reagrupar suas forças, repensar estratégias, rearmar suas linhas de frente e receber reforços bélicos e humanos da Coreia do Norte.
Zelensky cedeu, e agora cabe aos russos o início (ou não) do silenciamento das armas por trinta dias. Mas ao contrário do que o líder ucraniano diz publicamente, em Moscou são poucos os animados com a pausa, chamado de “traição pura e sabotagem” por alguns, e o presidente Vladimir Putin pode, assim como Zelensky, ser obrigado a fazer concessões indesejadas em prol de objetivos maiores do que a guerra.
Nesta quarta-feira, o secretário de Estado americano, Marco Rubio, pressionou os russos por uma resposta positiva, afirmando que se isso acontecer, os EUA “darão início ao processo” de implementação do cessar-fogo. Mas ele também prepara o terreno para uma eventual negativa.
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— Se eles disserem "não", isso nos dirá muito sobre quais são seus objetivos e qual é sua mentalidade, mas não quero entrar nisso antes mesmo que eles nos respondam — afirmou Rubio.
Segundo a Casa Branca, o enviado especial Steve Witkoff, que tem participado das conversas, deve seguir para Moscou "ainda esta semana" para apresentar os termos aos russos e trazer uma resposta a Washington, seja ela qual for. Segundo o plano, uma pausa de 30 dias será adotada assim que os dois lados entrarem em acordo, suspendendo os combates em terra, mar e ar, servindo como um compromisso inicial para um acordo mais amplo, que leve ao fim de três anos de guerra.
Avanços em Kursk
Enquanto as informações surgiam da Arábia Saudita, comandantes russos confirmavam avanços em Kursk, uma região do país controlada parcialmente pelos ucranianos desde agosto, e que poderia ser incluída nas futuras negociações de paz.
O portal Meduza mostrou na terça-feira que as forças de Kiev na área estavam “entrando em colapso”, e que a cidade de Sudja, por onde passa um gasoduto rumo à União Europeia, está sob controle quase total de Moscou. Em reunião com militares, Putin determinou nesta quarta que o Exército aja para “libertar completamente” a região “em um futuro próximo”.
Meses antes da contraofensiva em Kursk, os generais russos já apontavam que suas tropas estavam em vantagem, enumerando avanços importantes — mesmo que a um elevado custo humano —, no leste ucraniano, diante de forças de defesa cada vez mais exauridas e com recursos cada vez mais escassos. Vitórias que, na visão de Putin, lhe dariam uma mão mais forte na hora de firmar um acordo e permitiriam impor suas próprias condições, como a anexação em definitivo dos territórios ocupados, em um contexto que até agora parecia completamente favorável.
Ao congratular o presidente dos EUA, Donald Trump, pela posse, no dia 20 de janeiro, o líder russo havia dito que estava “aberto ao diálogo” sobre o conflito, que o objetivo “não deve ser um cessar-fogo de curto prazo, mas uma paz de longo prazo”, e que “a paz na Ucrânia deve ser baseada no respeito aos interesses legítimos das pessoas que vivem nesta região”.
Os atritos entre Trump e Zelensky deram confiança a Moscou, que rejeitou propostas, como a feita recentemente pelo presidente francês, Emmanuel Macron, de uma pausa temporária, e chegou a sugerir que poderia se acertar apenas com os EUA, sem Kiev. Mas o anúncio da terça-feira causou surpresa no Kremlin, e deixou Putin em posição desconfortável.
— Zelensky mudou de ideia claramente porque ele percebeu e foi convencido pelos líderes europeus que talvez seja a questão deixar o ônus para a Rússia — afirmou ao GLOBO Sandro Teixeira Moita, professor na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, citando as desvantagens militares da Ucrânia. — A interrupção do conflito talvez não seja tão boa para os russos, porque eles estão conseguindo vitórias no campo de batalha e os sinais de esgotamento das forças ucranianas estão ficando cada vez mais claros. E isso pode custar muito caro aos interesses russos.
'Traição'
Apesar das queixas vocais de alguns blogueiros militares e analistas — a palavra “traição” foi usada mais vezes do que gostaria o governo —, Putin pode se ver forçado a ceder diante da vontade de Trump. Além de um acordo sobre a guerra, o presidente russo entende que, ao contrário de seu antecessor, Joe Biden, o republicano está aberto à normalização dos laços com Moscou, o que inclui o retorno de diplomatas (e espiões) a Washington, a retomada de investimentos em seu país e a suspensão de parte das mais de 21 mil sanções.
Tirar a pressão sobre a economia e alcançar alguma normalidade no cenário internacional podem valer mais ao Kremlin do que os “objetivos de guerra”, apregoados desde 2022 — na prática, é uma escolha entre a Ucrânia e Trump.
— Putin também terá que saber muito bem equilibrar as tensões de perder um momento de grande oportunidade, onde ele pode conseguir pela força o que ele não conseguiu de outra maneira, e uma negociação na qual ele não consiga obter tudo o que deseja — opina Moita.
Como destacou um relatório do Instituto para o Estudo da Guerra, a imprensa estatal russa tem usado um tom moderado sobre o plano, dando destaque a uma fala da porta-voz da Chancelaria, Maria Zakharova, na qual afirma que “não descarta” contatos com os EUA nos próximos dias, e celebrando os avanços em Kursk. Mikhail Sheremet, deputado governista, disse que está interessado em um apaziguamento, mas que não aceitará ser enganado. E o secretário de Imprensa do Kremlin, Dmitry Peskov, pareceu tentar ganhar tempo.
— Vocês estão se precipitando um pouco — afirmou Peskov nesta quarta. — Ontem (terça), ao falar com a imprensa, tanto [o Secretário de Estado dos EUA, Marco] Rubio quanto [o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Michael] Waltz disseram que nos passariam por vários canais diplomáticos informações detalhadas sobre a essência das conversas que aconteceram em Jedá.
Se Putin optar por Trump e aceitar o cessar-fogo, teoricamente ele teria a chance de recuperar parte de suas forças, especialmente as envolvidas em combates em Donetsk e Luhansk, e receber reforços vindos de Pyongyang, mas correria o risco de perder o momento em Kursk — se as tropas russas não retomarem completamente a região antes da pausa nos combates, os ucranianos teriam uma janela perfeita para fortalecer suas posições na área, hoje sob ameaça, e usar esse território em futuras negociações. Sem contar possíveis novos envios de armas pelos aliados europeus e pelos EUA.