Extrema direita dos EUA põe em risco lei ao associá-la a restrições ao aborto e transição de gênero
Projeto deve ir à voto nesta sexta-feira sem o apoio dos democratas, que acusaram os opositores de "atacar as liberdades reprodutivas e enfiar sua ideologia na goela do povo"
Deputados republicanos puseram em xeque a aprovação da lei anual da Defesa americana, estimada em US$ 886 bilhões (R$ 4,3 trilhões), ao embutirem no projeto uma série de medidas conservadoras que restringem o acesso de militares a abortos, procedimentos para a transição de gênero e treinamentos de diversidade.
Segundo os democratas, o que começou como uma iniciativa bipartidária — e é historicamente aprovado por amplas margens, com endosso das duas legendas — foi transformado em mais uma faceta da guerra cultural para agradar a extrema direita.
Parlamentares do partido do presidente Joe Biden, considerados essenciais para a aprovação da lei, prometeram rejeitá-la em uma votação esperada para a manhã desta sexta. Em um comunicado divulgado na noite anterior, o líder da minoria democrata, o deputado nova-iorquino Hakeem Jeffries, e seus números dois e três, Katherine Clark, de Massachusetts, e Pete Aguilar, da Califórnia, afirmaram:
"Republicanos extremistas do MAGA escolheram sequestrar a historicamente bipartidária Lei Nacional para Autorização da Defesa para continuar a atacar liberdades reprodutivas e enfiar sua ideologia de extrema direita na goela do povo americano", afirmaram, usando a sigla para "Make America Great Again" ou "tornem os EUA novamente grandes", slogan associado ao ex-presidente Donald Trump.
Os republicanos, que têm 222 parlamentares, quatro a mais que o necessário para a maioria, demonstraram algum otimismo que conseguem aprovar a medida mesmo sem os opositores, que hoje tem 212 assentos. Creem que as mudanças conservadoras foram suficientes para agradar os quadros mais à extrema direita do partido e compensar pela quase universal oposição dos correligionários de Biden.
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— Eu acho que temos votos suficientes para sermos a maioria — disse o deputado Tom Cole, republicado de Oklahoma, que no início da semana previa o fracasso da iniciativa sem os democratas. — Será acirrado, mas acho que venceremos.
Ressalvas republicanas
O que está em jogo é uma iniciativa de US$ 886 bilhões que daria um aumento de 5,2% para os militares. Também custearia programas para fazer frente ao que os americanos percebem ser medidas agressivas da China e da Rússia, além de estabelecer um inspetor-geral para supervisionar a ajuda americana para a Ucrânia.
Os republicanos anexaram a ela uma reversão da política adotada pelo Pentágono para fornecer folga e reembolsos para funcionários que precisarem fazer viagens interestaduais para conseguir abortar. Ela foi aprovada por 221 votos a 213.
A medida mirada pelos conservadores foi adotada logo após a Suprema Corte reverter em junho no ano passado o precedente de 49 anos que garantia o direito constitucional ao aborto no país. Com o fim da jurisprudência, conhecida como Roe contra Wade, a responsabilidade de legislar sobre a interrupção gestacional foi transferida para cada estado.
Desde então, a maioria dos abortos — em alguns casos sem exceções sequer para vítimas de estupro, incesto ou gravidezes de risco — está vetada em 14 dos 50 estados americanos. Em outras unidades federativas, restrições draconianas estão paralisadas por ordens judiciais, enquanto processos tramitam.
Os republicanos também criaram medidas que proíbem os militares de oferecer seguros de saúde que cubram cirurgia de transições de gênero, que atualmente requerem autorizações, e terapias hormonais. Elas foram aprovadas por 222 a 211.
Também há cláusulas que eliminariam todos os escritórios de diversidade, equidade e inclusão nos escritórios do Pentágono, além dos cargos a eles relacionados. Elas foram aprovadas por uma margem menor, de 214 a 213. Uma medida apresentada pelo deputado Matt Gaetz, republicano da Flórida, que tentava vetar os gastos com qualquer tipo de treinamento de diversidade, contudo, foi derrubada por 210 a 221.
Há ainda emendas para vetar o braço educacional do Pentágono de comprar qualquer livro que tenha material pornográfico ou "englobe ideologia radical de gênero". Com o apoio de nove democratas, aprovaram também uma emenda que proíbe as escolas do Departamento de Defesa de ensinarem que os EUA, ou seus fundadores, são racistas.
Imbróglio no Congresso
As ressalvas republicanas não devem passar pelo Senado, controlado pelos democratas — os correligionários de Biden controlam 51 assentos, um a mais que a maioria, enquanto os opositores têm 49. Os senadores devem começar a considerar a medida na semana que vem, e as divergências entre ambas Casas podem desencadear um conflito capaz de pôr em risco um histórico de seis décadas da aprovação anual de leis de defesa.
O deputado Adam Smith, representante de Washington que é o principal democrata na Comissão dos Serviços Armados, lamentou a abordagem republicana à legislação. De acordo com ele, os adversários políticos estragaram uma medida que havia saído da comissão em um voto quase unânime, afirmando que o projeto se transformou em "uma ode ao fanatismo e à ignorância".
A situação, contudo, é uma vitória para os republicanos de extrema direita que vêm pressionando o presidente da Câmara, Kevin McCarthy, parlamentar californiano, a não trabalhar com os democratas. Defendem que ele deve acenar à base do partido em debates referentes à legislações importantes, em um momento no qual as primárias para a eleição presidencial de 2024 começam a esquentar.
O sucesso das emendas dá impulso para que os republicanos mais conservadores consigam pôr medidas similares em outros debates orçamentários iminentes. Também dá espaço para debates acalorados na plenária da Casa sobre assuntos polarizantes no país, como racismo e identidade de gênero.
O deputado Eli Crane, republicano do Arizona, por exemplo, usou uma expressão politicamente incorreta para se referir à população negra, o que levou a parlamentar Joyce Beatty, democrata de Ohio, a demandar que ele se retratasse. O parlamentar republicano mais tarde emitiu um comunicado afirmando que "se expressou mal" durante um debate sobre demandar ou não treinamento de diversidade para quem quer trabalhar no Departamento de Defesa.
— Frente aos comentários atrasados, racialmente insensíveis ditos nesta plenária, parece que o treinamento de diversidade e inclusão seria bom aqui nos corredores do Congresso — disse a deputada Jill Tokuda, democrata do Havaí.
Houve consenso em um aspecto, contudo, quando parlamentares ambos partidos rejeitaram uma proposta para impedir a Casa Branca de enviar as controversas bombas fragmentárias para a Ucrânia. As doações foram anunciadas há uma semana, e as primeiras remessas já chegaram ao país de Volodymyr Zelensky.
Os explosivos se abrem quando são disparados, dispersando centenas de granadas menores que explodem ao entrar em contato com seu alvo. Quando não detonam no impacto, viram minas que representam um risco para os civis mesmo após os conflitos terminarem.
Elas são proibidas em 123 nações signatárias da Convenção das Nações Unidas sobre Bombas de Fragmentação de 2008, que veta todo o uso, produção, transferência e armazenamento de tais armas. Entre elas, atores de peso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) como França, Alemanha e Reino Unido, que se distanciaram dos americanos.
A emenda contra as bombas de fragmentação foi apresentada pela deputada trumpista Marjorie Taylor Greene, republicana da Geórgia, que também tentou acabar com um programa de US$ 300 milhões para treinar e equipar soldados ucranianos, existente há mais de uma década. Ela foi vetada por 341 deputados, tendo o apoio de apenas 89.
Outra derrota acachapante foi sofrida por uma outra medida de Gaetz, vetando o Congresso de apropriar mais dinheiro para a resistência ucraniana à resistência russa. Ela foi derrotada por 358 votos a 70.