Lei Maria da Penha ainda não é respeitada no Interior
Dez anos depois, Lei ainda não foi absorvida nas cidades pequenas mais afastadas da Capital
Em Joaquim Nabuco, o feminismo esbarra na realidade. Numa iniciativa improvável, cem mulheres se articulam para denunciar, por meio do WhatsApp, a violência doméstica na cidade da Mata Sul. Mas, se por um lado o direito ao próprio corpo e a independência são conhecidos e divulgados pelas habitantes locais, por outro os abusos ainda são constantes.
Dez anos depois de criada, a legislação que protege as mulheres contra as agressões ainda não alcançou as cidades pequenas. E onde a lei não é cumprida, os direitos titubeiam.
O Centro das Mulheres Joaquim Nabuco precede a Lei. As duas primeiras integrantes se uniram para proteger a si e às outras vítimas em 1989. Sabiam que eram frágeis se permanecessem sozinhas. A polícia estava do lado dos agressores. “Isso se resolve em casa, à noite”, dizia um dos delegados que passou pela cidade. Muitas vezes eles registram as surras como lesão corporal, não violência doméstica.
As estatísticas são ainda mais prejudicadas porque as vítimas têm medo de denunciar. “Temos que focar no interior. São lugares que precisam de Centros de Referência da Mulher e abrigos para acolhê-las. Só assim elas estarão seguras ao denunciar os agressores”, explica a própria Maria da Penha. As tentativas de homicídio, menos camufláveis, foram 33% mais registradas no interior no último mês. Caruaru foi a campeã estadual, com 19 ocorrências.
Segundo as mulheres da cidade, há poucos registros, mas a maioria das 8 mil mulheres da cidade já sofreu violência doméstica. Maria José Bezerra, 51, está na linha de frente do projeto em Joaquim Nabuco, mas se vê de mãos atadas. “Como eu poderia protegê-las? Não há para onde levar, não há como garantir segurança. No fim das contas, até nós do Centro estamos na mira”, avaliou. Como a maioria das integrantes da articulação, ela já sofreu agressão.
Magal Silva, 51, por exemplo, apanhou com cabo de enxada, de vassoura e tabica de goiabeira até os 40 anos. O autor do crime era o próprio pai. Ele batia também na filha dela. “Eu ameacei denunciar. Aquilo não poderia continuar. Ele ficou criticando a lei porque, agora, mulher queria ter direitos. Mas nunca mais me bateu”, contou. Hoje é uma das vigilantes mais atentas.
Foi pelo trabalho de Magal, Maria José e das outras 98 mulheres que Adriana da Silva, 40, está a salvo. Ela foi surrada pelo marido até durante a gravidez. A pressão do grupo no Fórum levou o poder Judiciário a agir. O rapaz foi finalmente detido. “Ele pegou uma faca e ameaçou matar minha mãe. Com a moto, rondava a delegacia enquanto eu prestava queixa. Mas foi preso por três meses e hoje há medida protetiva de 200 metros contra ele”, lembrou.
Muitas não têm destino semelhante ao de Adriana, mesmo sendo ajudada pelo grupo. Com medida protetiva válida apenas para dentro da própria casa, uma das mulheres monitoradas pelo Centro foi assassinada a tiros pelo ex-marido quando fazia compras no mercado. “Foi um caso que mexeu muito com a gente por causa desse desfecho. Trabalhamos para mudar esse final. Ele se entregou. Disse que não aguentava mais a gente infernizando a vida dele. No boca a boca, o perseguimos e acabamos com a paz dele. Está preso”, contou Magal.
Machismo institucional
Quando Neide Marques foi esfaqueada pelo marido há mais de 15 anos, decidiu não ir ao Posto de Saúde de Joaquim Nabuco. Caso fosse, poderia ser ridicularizada. Os relatos de mal atendimento são incontáveis. Referem-se, principalmente, a comentários jocosos. “Apanha hoje e volta para ele amanhã.”
Na delegacia, o mesmo, mas as consequências eram mais sérias. Há nove anos, Claudete Santos, 28, denunciou o caso de racismo que sofreu. Recebeu machismo do delegado. “Fui lá porque tinha sido chamada de ‘macaca’. Tinha testemunhas. Mas o delegado disse que, por minha roupa ser curta, eu estava provocando. Insistiu que, na verdade, eu tinha um relacionamento amoroso com o rapaz. Por sorte, havia uma delegada no dia. Ela recebeu a queixa e encaminhou para o MPPE.”
Com o trabalho da Articulação de Mulheres da Mata Sul e do Instituto SOS Corpo, o problema foi atenuado. Palestras conscientizaram os profissionais. Ainda a Rádio Mulher, produzida por elas e hoje extinta por falta de apoio, difundiu o feminismo na cidade.
Entre os homens e os cachorros
Mônica Conceição, 29, foi obrigada a pedir esmolas aos 6 anos. Caso não trouxesse dinheiro para casa, o pai tirava a roupa dela, a amarrava e a jogava no chão do quintal. Era onde passava a noite. “Com o cachorro”, lembra, em detalhes.
Enquanto mendigava, foi abusada por um desconhecido. Ele a fez entrar em casa. Mônica era tão criança que não entendeu o que tinha acontecido. Só compreendeu ter sofrido um estupro quando foi morar com um namorado aos 13. Ele a “devolveu” à família quando descobriu que ela não era virgem.
Aos 16, começou um relacionamento abusivo. “Quando ele chegava, a casa tinha que estar varrida. Se não, eu apanhava. Então ele saía para farrar e me deixava cuidando do nosso filho. Decidi ir embora pouco mais de um ano depois. Lembro como se fosse hoje. Deixei a casa limpa, a comida pronta e parti. Ele tentou me buscar, mas eu não quis voltar.” De volta à casa da mãe, o padrasto passou a assediá-la. “Tocava meus seios e dizia que eu não precisava arrumar ninguém. Muitas vezes eu preferia dormir fora de casa, com o cachorro, para não enfrentá-lo. Daí consegui um emprego. Morava lá, mas mandava o dinheiro para a minha mãe mensalmente. A última vez que a visitei, peguei meu padrasto olhando para minha filha, de três meses. Foi quando minha mãe o deixou de vez. Hoje moramos juntas.”
Mônica escolheu não se relacionar novamente. Teme que a filha seja abusada. O possível namorado poderia repetir o comportamento dos homens que passaram por sua vida. A filha, hoje pré-adolescente, é superprotegida e não entende as escolhas da mãe. “Ela acha que não a amo”, lamentou Mônica.
“Não sabia que era vítima”
Maria José Bezerra, 51, casou-se aos 19 anos, mas só aos 27, frequentando um grupo de mulheres da região, descobriu que a situação vivida diariamente não era normal. “Até ali eu não sabia que era uma vítima. Achava que violência era só bater. Ele me estuprou várias vezes. Dizia que, se eu não queria com ele, era porque eu tinha feito na rua. Eu não tinha coragem de dar um basta. Amava demais. Mas, quando eu percebi, estava tremendo sempre que via o carro dele chegar. Foi quando acabei”, lembra.
“Se ele gostasse de mim...”
Neide é uma mulher forte. Tem personalidade. Mas na hora de contar os abusos sofridos, inconscientemente, tenta justificá-los: “Eu reclamava quando ele voltava das farras. Começávamos a discutir e ele começava a me espancar. Era sempre assim”, lembrou.
A queixa à polícia nunca veio. Ela simplesmente foi embora quando ele procurou uma faca e tentou atacá-la. “Eu me protegi com o braço e foi justamente onde ele me acertou. Foi a gota d’água. Hoje, aprendi a me dar valor e sei que se ele realmente gostasse de mim não faria isso.”