Líderes adotam discursos de guerra contra pandemia
Chefes de Estado e de governo têm recorrido a frases e gestos grandiosos para demonstrar a gravidade do momento e pedir a união nacional
Retórica militar, patriotismo exacerbado e a lembrança de glórias passadas. Na crise da Covid-19, diversos líderes mundiais têm buscado em entrevistas e pronunciamentos seu momento Winston Churchill. O primeiro-ministro britânico da Segunda Guerra Mundial tornou-se icônico ao levantar o moral de um povo assustado com o avanço nazista, prometendo nunca se render.
Embora a oratória churchilliana seja insuperável, chefes de Estado e de governo têm recorrido a frases e gestos grandiosos para demonstrar a gravidade do momento e pedir a união nacional.
Mesmo com as redes sociais, a TV segue sendo um veículo incontornável, com frequentes cadeias nacionais e entrevistas coletivas. Referências a guerra são comuns. Em pronunciamento à nação francesa, o presidente Emmanuel Macron usou sete vezes a expressão "estamos em guerra" em 21 minutos.
"Não lutamos contra um Exército ou contra outra nação. Mas o inimigo está lá, invisível, imperceptível, progredindo. E isso requer nossa mobilização geral", disse, em seu gabinete no Palácio do Eliseu.
Foi o segundo pronunciamento em quatro dias de Macron, sua forma preferida de se comunicar com a população. Os primeiros acordes da Marselhesa no início da transmissão ajudaram a compor o clima solene. Na Alemanha, a chanceler Angela Merkel adotou o mesmo modelo.
Com a abóbada do Reichstag (o Parlamento) ao fundo, sentada e com ar sóbrio, comparou o momento à luta contra o nazismo. "Desde a reunificação, não, desde a Segunda Guerra Mundial, não houve outro desafio para nosso país que dependa tanto de nossa ação solidária e comum."
Os dois líderes europeus optaram por discursos caudalosos. Macron usou 2.621 palavras, e Merkel, 1.746. Em comparação, os dois pronunciamentos na TV do presidente Jair Bolsonaro foram raquíticos e frios: 203 palavras em 6 de março, quando chamou a doença de "grande desafio" e 221 em 12 de março, quando falou apenas em preocupação. Em ambos, pediu para não haver pânico.
Um pronunciamento também foi o modo escolhido pelo primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte para falar à nação em 4 de março, no momento em que as mortes disparavam. "Somos um país forte, um país que não se rende. É o nosso DNA."
No país do Império Romano, Conte buscou num evento recente um exemplo da fibra italiana. "Vamos aplicar o modelo da Ponte Morandi, que ensina que quando nosso país é golpeado, sabe se levantar, formar um time e tornar-se mais forte".
Leia também:
Economia mundial sofrerá 'durante anos' pelo coronavírus, adverte OCDE
Número de mortes da pandemia de coronavírus supera 15 mil no mundo
Trump anuncia medidas contra coronavírus e volta a criticar China
A referência é a uma construção em Gênova que desabou em 2018, matando 43 pessoas. Passado o choque, houve um grande movimento nacional de solidariedade às famílias e incentivos econômicos do governo para a reconstrução da ponte e da
região.
Expoentes da direita populista, Donald Trump (EUA) e Boris Johnson (Reino Unido) têm preferido as entrevistas coletivas quase diárias, sempre ladeados por cientistas (que quase não abrem a boca).
Trump também investe pesado na metáfora bélica e chegou a se declarar um "presidente em tempo de guerra". Também não resistiu a uma referência à guerra. "Cada geração de americanos é chamada a fazer sacrifícios pelo bem da nação. Na Segunda Guerra, jovens se voluntariaram para lutar." Trump, contudo, tem tido momentos menos solenes, como fustigar a China falando em "vírus chinês" e bater boca com repórteres.
Já Boris tem repetido os eloquentes movimentos com braços e as súbitas alterações no tom de voz ao falar à nação. Para ele, a Covid-19 é um "inimigo invisível", como classificou numa entrevista coletiva. "Precisamos remover esse manto da invisibilidade [fazendo o gesto de uma capa sendo retirada] e identificar quem de nós o está carregando [esticando o braço e apontando para os jornalistas]".
Ninguém foi mais explícito no uso da simbologia militar, no entanto, que o chinês Xi Jinping, numa visita a Wuhan, epicentro da pandemia. Cercado por militares de farda, ele disse a profissionais de saúde por videoconferência que "podemos vencer essa guerra". De máscaras, eles bateram continência.
Para a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, momentos de crise sempre trazem a figura do "grande líder" que fala para a nação. "O chefe de Estado ou governo pode aparecer como o salvador nesse momento", diz. "O momento é favorável para esses nacionalismos exacerbados, e até medidas de exceção."
No Japão, o primeiro-ministro Shinzo Abe aproveitou o relativo sucesso no controle da doença para estocar dois adversários históricos, a China e a Coreia do Sul, lembrando que o número de infectados no país é menor do que nos dois vizinhos.
Abe tem preferido se comunicar por meio de notas oficiais. Já são 22 desde o janeiro.
No mundo emergente, a retórica da guerra se repete, a começar pela vizinha Argentina. "É uma luta contra um Exército invisível e que além disso era desconhecido", disse o presidente Alberto Fernández em entrevista coletiva.
Na África do Sul, o presidente Cyril Ramaphosa falou à nação pela TV e agarrou-se num evento glorioso, a luta contra o apartheid. Terminou citando "We Shall Overcome" (vamos superar), hino da luta contra a segregação racial
Acompanhe a cobertura em tempo real da pandemia de coronavírus
Veja também

Casa real britânica não divulgará relatório de "assédio" de Meghan Markle
