Mapa inédito do Recife do século XVII retrata expulsão dos holandeses
Desenho atribuído a cartógrafo português mostra como os colonizadores lusitanos e tropas locais expulsaram os holandeses do Brasil
Um mapa inédito do Recife descoberto na França mostra como os portugueses expulsaram os holandeses do Brasil, em 1654. A ilustração retrata o cerco que permitiu que os lusitanos retomassem o controle da então Capitania de Pernambuco, após 24 anos de domínio holandês no século XVII.
Os holandeses, por meio da Companhia das Índias Ocidentais, ocuparam parte da região Nordeste do Brasil entre 1630 e 1654, em uma área que se estendia do atual estado de Alagoas ao Ceará, incluindo Pernambuco.
O desenho considerado único e inédito para historiadores brasileiros e europeus foi adquirido em 2023 pelo Instituto Flávia Abubakir (IFA), da Bahia, após ser encontrado por acaso em um livreiro da França.
Os historiadores e pesquisadores Bruno Romero Ferreira Miranda, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), e Pablo Iglesias Magalhães, da Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob), trabalharam no mapa, conduzindo estudos para, entre outros fatores, identificar o autor do documento.
Sem assinatura, essa verdadeira joia cartográfica de quase quatro séculos contém em sua margem inferior o seguinte título:
"Demonstração da Cidade de Santo Antônio de Pernambuco e vila do Arrecife no Brasil"
O professor Bruno Miranda explica que o mapa foi comprado pelo IFA por meio de um livreiro dos Países Baixos, responsável por intermediar a compra junto a um colecionador da França. Ele destaca a importância da gravura, explicando que se trata do único registro visual produzido sobre o cerco ao Recife e sobre a reconquista da cidade por parte das tropas luso-brasílicas.
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"Não existe nenhuma representação gráfica e visual até o momento desse episódio, que pôs fim ao domínio holandês em parte do Brasil", detalhou o historiador, em entrevista à Folha de Pernambuco.
O mapa agora integra a Coleção Flávia e Frank Abubakir. (Acesse aqui uma galeria com imagens em alta resolução do documento)
O historiador Pablo Iglesias, da Ufob, também disse em entrevista à Folha de Pernambuco, que o mapa era desconhecido e nunca havia aparecido em nenhum catálogo de biblioteca ou de leilão.
"Os historiadores já buscavam algum registro desse episódio, da expulsão dos holandeses, desde o século XIX. Isso já era buscado pelo principal historiador brasileiro, que era o Francisco Adolfo de Varnhagen, autor [do primeiro livro da] História do Brasil relevante. Ele já coloca em 1854 que a ausência de imagens daquele episódio era de se lamentar", explicou Pablo Iglesias.

O mapa
Com uma perspectiva de vista de pássaro única e colorida, o mapa apresenta uma descrição detalhada do ataque que aconteceu entre dezembro de 1653 e janeiro de 1654 no então Recife holandês. Portugueses e tropas locais cercaram e conseguiram expulsar os holandeses.
O mapa carrega um alto nível de detalhamento e, de acordo com Bruno Miranda, mostra o cerco naval e terrestre ao Recife e à Ilha de Antônio Vaz porção de terra que hoje corresponde aos bairros de Santo Antônio e São José, na área central da capital pernambucana.
"O desenho tem num primeiro plano a Armada da Companhia de Comércio, que faz o cerco por mar, meio que um semicírculo fechando o acesso ao Porto do Recife. Então ninguém entra e nem sai do porto, porque tem uma Armada bloqueando aquela passagem. E por terra, os acampamentos e entrincheiramentos das tropas luso-brasílicas que cercam o Recife", detalha Bruno.
Essas 16 embarcações da Armada da Companhia de Comércio de Portugal eram comandadas por Pedro Jacques de Magalhães e Francisco de Brito Freire. A esquadra partiu de Lisboa em outubro de 1653 para encerrar de vez a ocupação holandesa no Nordeste brasileiro.
Bruno Miranda também explica que na representação da parte de dentro da cidade, há um detalhamento minucioso do conjunto de fortificações que protegem o Recife.
"Tem o palácio de Nassau com seu jardim, tem a ponte que a gente chamaria de Maurício de Nassau, mas não é a mesma ponte, é o lugar onde foi construída a primeira ponte. Tem esses pequenos elementos, além de registro escrito detalhado sobre quais foram as fortificações atacadas, quem participou, onde foi rendida a cidade", completou o pesquisador da UFRPE.
No centro do desenho, estão o núcleo português original do Recife e a Mauritsstad, a "Cidade Maurícia", cercada pelos navios portugueses. As embarcações rodeavam a cidade planejada, com seus canais, jardins, fortificações e até uma praça de armas.

O desenho foi feito com tinta marrom e aquarela sobre um papel com brasão francês e mede 43 por 35 centímetros. Quando foi encontrado, apresentava danos nas bordas e na dobra central, mas foi restaurado.
Essa era a joia urbanística do domínio holandês: uma cidade planejada, sede do poder da Companhia das Índias Ocidentais, com canais à moda de Amsterdã, capital dos Países Baixos, uma administração organizada e até políticas de tolerância religiosa.
Ao fundo, aparecem os bastidores: acampamentos e baterias provisórias das tropas portuguesas e locais, lideradas por Francisco Barreto de Menezes, se preparam para o ataque definitivo.
Estão ali também os nomes dos comandantes da resistência, como André Vidal de Negreiros e Henrique Dias, figuras cruciais da luta pela reconquista.
Pablo Iglesias explica por que a produção de mapas era importante para a Coroa portuguesa e todas as potências da época.
"Na verdade, é importante ainda hoje, mas para as potências do século XVII era imprescindível, porque você tinha ali uma representação de todas as informações que permitiam o deslocamento, o comércio, a produção. Isso também estrategicamente pensando num contexto de guerra, num contexto militar. Esses mapas eram colocados sempre em sigilo", destacou o historiador da Ufob.

O pesquisador lembra que as informações trazidas nesses mapas eram sensíveis, mas, na segunda metade do século XVII, esses documentos começaram a "vazar" para outras potências, como, por exemplo, na disputa territorial com a França.
"Daí esse mapa ter aparecido na França, provavelmente retirado por algum militar francês que estava em Lisboa na época. É um mapa que a gente não consegue rastrear a origem até o ponto em que encontramos ele, porque ele foi retirado de Portugal provavelmente por contrabando", completou Pablo Iglesias.
Autoria do documento
Um minucioso estudo realizado em arquivos do Brasil, da Espanha, dos Estados Unidos, da França, da Inglaterra e de Portugal feito pelos pesquisadores Bruno Ferreira Miranda e Pablo Iglesias Magalhães conseguiu identificar a autoria do mapa.
Para chegar à autoria e à autenticidade do documento, os pesquisadores buscaram traçar um histórico de quem já havia feito um registro visual da guerra dos portugueses com os holandeses pelo domínio do território.
A partir desse panorama, o desenho foi atribuído ao cartógrafo português João Teixeira Albernaz II, também conhecido como João Teixeira Albernaz, o Moço. Albernaz II era membro de uma tradicional e influente família de cartógrafos que mapeou o Brasil, a costa atlântica e o oriente desde o século XVI.
O avô dele, João Teixeira Albernaz I (também conhecido como João Teixeira Albernaz, o Velho) elaborou cerca de três centenas de mapas, dos quais mais da metade foram dedicados ao Brasil.
"Começamos a perceber que ele [João Albernaz Teixeira I] era um dos poucos que tinham feito esse tipo de registro. O neto dele também tinha elaborado na década de 1660 duas cartas do Recife sob domínio holandês. Como a gente chegou para fechar que era um desenho que poderia ser atribuído aos Albernaz? Era a caligrafia", colocou Bruno Miranda.
"A caligrafia foi fundamental para encontrar o autor. É um mapa que tem observações escritas, o que foi excelente inclusive para dar uma indicação mais precisa de todos os pontos do que tinha sido representado. Isso foi fundamental, foi a partir da caligrafia e da comparação das letras que a gente conseguiu identificar o João Albernaz II como autor", corroborou Pablo Iglesias, ao explicar como chegaram ao nome do célebre cartógrafo português.
Bruno Miranda também explicou que chegaram ao nome do neto e não do avô como autor do mapa porque o último trabalho conhecido de Albernaz I é de 1649, anterior ao fato histórico retratado no mapa do Recife destacado, que aconteceu em 1654.
"O primeiro trabalho conhecido do Albernaz II é de 1655. Existem elementos muito comuns na caligrafia de ambos, mas o Albernaz Teixeira I possivelmente já havia falecido e aí sobra o neto dele", completou o pesquisador da UFRPE.
Ainda segundo os pesquisadores, entre outras evidências coletadas para a determinação da autoria estão a similaridade na representação de acidentes geográficos artificiais no desenho e em distintos mapas de autoria dessa família de cartógrafos.
O desenho ainda foi enriquecido com anotações relacionadas à batalha de reconquista do Recife. Segundo os pesquisadores, os textos inseridos que descrevem os eventos do cerco guardam muitas similaridades factuais com os registros portugueses e holandeses, indicando, portanto, que seu autor estava bem informado.
Bruno Romero Ferreira Miranda e Pablo Iglesias Magalhães prepararam um estudo sobre o desenho para apresentar o achado à comunidade científica.
"O instituto nos ajudou a fazer a pesquisa, precisamos fazer fora do Brasil. Estamos concluindo um estudo científico que vai ser publicado em uma revista acadêmica brasileira explicando em detalhes como a gente chegou na autoria do desenho, o que é o desenho, o contexto de produção. O estudo está pronto", finalizou Bruno Miranda.