Monstro-de-gila: conheça o lagarto venenoso do deserto que virou chave para a criação do Ozempic
Quase ameaçado de extinção, réptil ajudou pesquisadores a desenvolverem medicamentos usados no combate à diabetes e à obesidade
O monstro-de-gila (Heloderma suspectum), lagarto nativo de regiões desérticas do sudoeste dos Estados Unidos e norte do México, uma das poucas espécies venenosas do mundo, tornou-se um grande aliado da ciência.
É que a saliva desse réptil inspirou cientistas a criarem novas abordagens para o tratamento de doenças metabólicas e desenvolverem medicamentos que revolucionaram o combate à diabetes e à obesidade, como o Ozempic. O animal é capaz de sobreviver durante meses sem se alimentar e passar um ano inteiro com apenas seis refeições.
Esse lagarto acumula grandes reservas de gordura em sua cauda e, segundo o biólogo André Maia, costuma se alimentar de aves, ovos, outros lagartos e roedores.
"Na realidade, tudo que se mexe e caiba na boca dele, ele pode comer. Ele tem uma adaptação muito grande em ambientes secos e fica a maior parte do seu tempo em tocas subterrâneas ou em pedregulhos. Esses animais, durante os meses do verão, se escondem do sol intenso, mas durante o inverno, também podem hibernar", explica o biólogo.
O princípio ativo do Ozempic, a semaglutida, pertence a uma classe de remédios conhecidos como agonistas do GLP-1, que imitam um hormônio natural do corpo para regular o nível de glicose no sangue e reduzir o apetite, bem como ajudam na digestão.
Nos anos 1990, ao estudarem a biologia do monstro-de-gila, réptil que pode alcançar até 60 centímetros de comprimento, pesquisadores descobriram que a saliva dele continha um peptídeo — molécula formada pela ligação de dois ou mais aminoácidos — chamado exendina-4, muito parecido com o hormônio humano GLP-1.
O GLP-1 também estimula a liberação de insulina, reduz a produção de glicose pelo fígado e retarda o esvaziamento do estômago, ajudando a manter a sensação de saciedade por mais tempo.
GLP-1 é o hormônio imitado pela semaglutida | Imagem: Universidade de Queensland/Austrália
Embora tenha essas características, o GLP-1 natural passa por um processo de degradação muito rápido no organismo humano, o que limita seu potencial como medicamento.
"O GLP-1 humano é um hormônio que ajuda a liberar insulina e a reduzir o apetite, mas ele é rapidamente destruído por enzimas em poucos minutos. A exendina-4 tem uma estrutura um pouco diferente do GLP-1 endógeno, tornando-o mais resistente à degradação por essas enzimas", explica a médica endocrinologista assistente do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Patrícia Gadelha.

Foi nesse cenário que os cientistas identificaram que a exendina-4 produzida pelo monstro-de-gila era mais resistente e permanecia ativa no corpo por muito mais tempo.
Os cientistas então desenvolveram o primeiro fármaco derivado do veneno do réptil: a exenatida, comercializada no mercado como Byetta, a partir de 2005, após aprovação da Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos.
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Esse foi o primeiro tratamento desenvolvido com base nos agonistas do GLP-1, o que revolucionou o cuidado com a diabetes tipo 2 — no Brasil, cerca de 18 milhões de pessoas vivem com essa doença, segundo dados da pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel Brasil), de 2023.

O biólogo André Maia lembra que cientistas descobriram que o veneno do monstro-de-gila tem atuação sobre o pâncreas humano.
"[O veneno] causa uma inflamação no pâncreas e estimula o pâncreas a produzir o hormônio insulina e diminuir a quantidade de glucagon", afirma o especialista, relembrando: "O hormônio insulina é aquele tipo de hormônio que controla a taxa de glicose na nossa corrente sanguínea".
Ele ainda pontua que o monstro-de-gila é apenas um dos répteis que ajudam os seres humanos no desenvolvimento de medicamentos, como são os casos da jararaca utilizada na produção de Captopril, um medicamento para pressão arterial, e em pesquisas sobre a Covid-19, e a cobra cascavel, na produção da Dermabond, cola usada em cirurgias.
"E o interessante é que todo mundo termina tendo medo desses animais porque são peçonhentos. Olha o próprio nome dele: monstro-de-gila. As pessoas terminam tendo meio que um repúdio desses animais", completa.
A pesquisa com o princípio ativo do monstro-de-gila levou posteriormente ao desenvolvimento da semaglutida, princípio ativo do Ozempic e de outros medicamentos para o combate à diabetes, como o Wegovy e o Mounjaro.
A endocrinologista Patrícia Gadelha também explica que os medicamentos como a semaglutida têm várias ações que ajudam a controlar a diabetes.
"Eles estimulam o pâncreas a liberar mais insulina para baixar o açúcar do sangue após uma refeição, tornam o esvaziamento do estômago mais lento, o que evita picos de glicose após as refeições, além de reduzirem a fome por inibição dos centros do apetite", pontua.
Esses remédios, ao reduzirem o apetite e aumentarem a saciedade, também passaram a ser usados para o tratamento da obesidade, chegando a provocar perda média de até 15% do peso corporal em alguns pacientes.
"A semaglutida age em uma parte do cérebro chamada hipotálamo, que controla a fome e a saciedade. Eles 'ligam' sinais que dizem 'estou satisfeito' e 'desligam' os sinais de vontade de comer mais", acrescenta Patrícia Gadelha.
É comum, inclusive, que medicamentos inicialmente desenvolvidos para um fim assumam outros usos. O Viagra, por exemplo, originalmente foi feito para pressão alta, e agora é usado também para disfunção erétil. Já a talidomia, um tratamento para o enjoo matinal, agora é valioso no combate ao câncer.
Popularização dos medicamentos
A semaglutida, atualmente produzida sinteticamente, sem necessidade de extrair substâncias do monstro-de-gila, tem meia-vida mais longa do que a exenatida, o que permite aplicações semanais.
Com isso, a semaglutida tornou-se mais eficaz e prática, causando o aumento da popularidade do Ozempic e de outros medicamentos do gênero.
Essa nova forma de produção dos medicamentos ainda contribuiu para reduzir o risco de exploração do animal para fins farmacêuticos.
Patrícia Gadelha lembra que essa classe de medicamentos para perda de peso está muito popular, especialmente por ajudarem nesse processo com segurança e poucos efeitos colaterais.
"Mas eles [os efeitos colaterais] existem e, por isso, a prescrição precisa ser feita e acompanhada por médico. Os efeitos colaterais mais comuns são náuseas, vômitos e diarreia, que geralmente diminuem com o tempo de uso. Porém, há riscos mais sérios como problemas na vesícula biliar, embora sejam raros", completa a endocrinologista do Hospital das Clínicas.
A médica ainda ressaltou que os agonistas do GLP-1 continuarão sendo uma tendência no tratamento da obesidade e da diabetes.
"Os agonistas do GLP-1, como o Ozempic, têm mostrado resultados impressionantes no controle do diabetes e da obesidade, duas condições que afetam milhões de pessoas no mundo. A ciência está até desenvolvendo versões ainda mais potentes ou combinadas com outros tratamentos. Como essas doenças continuam crescendo, esses medicamentos devem seguir como uma ferramenta importante, desde que sejam usados com segurança e pesquisa contínua", finaliza.
Quase ameaçado de extinção
O monstro-de-gila está quase ameaçado de extinção, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), por conta da perda de seu habitat provocada pela expansão humana e captura para o comércio ilegal.
A mordida do lagarto é raramente fatal, mas, em novembro de 2024, um homem morreu no Colorado, nos Estados Unidos, ao ser mordido pelo seu monstro-de-gila de estimação. Relato anterior de morte humana relacionada ao animal era de 1930.
Características do monstro-
O monstro-de-gila pode viver em média 20 anos ou mais. Segundo o biólogo André Maia, o veneno dele está localizado em sua mandíbula inferior.
Por isso, foi difícil a identificação dos dentes que expeliam a peçonha. Os dentes desse lagarto, ao serem colocados para fora, empurram as gengivas para baixo.
"Quando o animal morde uma presa ou até mesmo um ser humano, ele termina fazendo com que, na dentada, as suas gengivas abaixem e aí os dentes dele comprimem glândulas de veneno", disse o biólogo.
Na parte inferior da mandíbula, há entre oito e dez dentes e cada um com uma glândula individual de veneno, que costuma causar dores intensas nos seres humanos.
Apesar de ter uma aparência um pouco ameaçadora, ele passa a maior parte do tempo escondido em tocas subterrâneas e não representa grande perigo para os humanos. Conheça algumas curiosidades sobre esse animal:
Características físicas: o monstro-de-gila tem um corpo robusto e coberto por escamas salientes, que lembram miçangas. Sua coloração é geralmente uma mistura de preto, rosa, laranja ou amarelo, funcionando como um aviso aos predadores sobre sua toxicidade.
Dieta e alimentação: carnívoro, o lagarto se alimenta principalmente de ovos, pequenos mamíferos, aves e répteis. Ele pode consumir grandes quantidades de comida de uma só vez e armazenar gordura na cauda, o que permite que sobreviva longos períodos sem se alimentar.
Comportamento e habilidades: apesar de venenoso, o monstro-de-gila é um animal relativamente lento. Seu veneno é usado para imobilizar presas, mas também pode servir como mecanismo de defesa contra predadores. Ele raramente ataca humanos e só morde caso se sinta ameaçado.
Reprodução: o monstro-de-gila se reproduz por meio de ovos, que são depositados em ninhos subterrâneos. Os filhotes nascem totalmente formados e já independentes, sem necessidade de cuidados parentais.
Estado de conservação: embora ainda não esteja oficialmente em perigo de extinção, as populações de monstro-de-gila estão diminuindo devido à perda de habitat causada pela urbanização e à captura ilegal para o comércio de animais exóticos.
Escamas: o monstro-de-gila tem escamas diferentes das serpentes embaixo do seu corpo, que são como "pedaços de ossos em formas de bolinha". Nas serpentes, parecem espátulas. Essas escamas diferenciadas fazem com que esse animal possa ficar dentro de locas (cavidade ou abrigo natural, geralmente subterrâneo ou formado por rochas), embaixo de pedras e, assim, não danifiquem as suas escamas.
"Caso as escamas do lagarto fossem como espátulas, igual às serpentes, com o fato dele ficar embaixo de pedras, também forçando entrada em alguns buracos do solo, ele terminaria lesionando as escamas", explica André Maia, dizendo, ainda, que, assim como na maioria dos répteis, quando essas escamas são lesionadas, elas não regeneram.
"O fato dele ter essas escamas abuloadas também facilita bastante esse comportamento que é ficar embaixo da terra", completa o biólogo.
Fonte: Smithsonian's National Zoo & Conservation Biology Institute e biólogo André Maia