Mudança de status da Usaid revela crescente poder de Musk no governo Trump
Avanços recentes do bilionário contra o Departamento do Tesouro e a agência de ajuda internacional americana levantam preocupações sobre ingerências públicas e privadas na administração federal
Quando o Departamento de Eficiência Governamental (Doge, na sigla em inglês) foi concebido nos EUA, antes da posse de Donald Trump, a ideia é que fosse uma espécie de comitê consultivo, liderado pelo bilionário Elon Musk, para auxiliar o governo a cortar gastos e revisar processos.
A ideia logo foi ampliada. Tendo em Musk uma das figuras mais populares e influentes de seu entorno, e pretendendo emplacar uma agenda que subverte a administração anterior, Trump instituiu o Doge como um braço do Executivo, que em menos de três semanas protagonizou embates com funcionários federais e acessou dados sensíveis — o que autoridades americanas temem que possa expor informações de cidadãos e levar a interferências da Casa Branca sobre decisões do Congresso (ou ainda do próprio Musk sobre o governo).
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O homem mais rico do mundo foi taxativo ao afirmar, em uma live nesta segunda-feira na rede social X, que Trump deu sinal verde para o fechamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, na sigla em inglês), onde representantes de sua equipe foram impedidos de entrar em áreas restritas que guardavam material confidencial. A negativa provocou uma reação furiosa de Musk, que repercutiu teorias da conspiração, como a de que a agência é uma organização criminosa, e que estaria envolvida em "trabalhos sujos da CIA".
— Quero ser claro — afirmou o dono do X durante a transmissão ao vivo na rede social — Na verdade, verifiquei com ele [Trump] algumas vezes [se a agência deveria ser fechada]. Eu disse: 'Você tem certeza?'. 'Sim'. Então, estamos fechando.
Funcionários da Usaid foram notificados por e-mail de que não deveriam comparecer ao escritório em Washington nesta segunda-feira, enquanto o site e as contas nas redes sociais da agência foram retirados do ar — com uma versão resumida permanecendo ativa como uma subpágina do site do Departamento de Estado. Horas mais tarde, o secretário de Estado, Marco Rubio, afirmou que estava assumindo interinamente o comando da Usaid para "acabar com a insubordinação".
Embora tenha sido escalado para um trabalho técnico e com forte atenção aos bastidores, Musk transformou a atuação do Doge em um espetáculo público. Oficialmente, a missão da força-tarefa é revisar e reduzir o gasto público e modernizar softwares, infraestruturas de rede e sistemas de tecnologia da informação de todo o governo, tornando-o mais eficiente. Sob a gestão de um dos homens mais conhecidos da atualidade, o órgão se transformou em uma parte ativa da guerra cultural liderada pelos republicanos.
Em uma publicação no X, após o início da crise com a agência, ele afirmou que a Usaid era "um ninho de víboras de marxistas da esquerda-radical que odeiam os EUA". Em outras publicações, também acusou motivações ideológicas para a resistência de órgãos em ceder os dados — algo questionado por representantes democratas e alguns republicanos, que afirmam que a sensibilidade das informações mantidas nos sistemas do governo não podem ser postas em risco.
O caso mais sensível, apontam as autoridades, envolve o sistema federal de pagamentos do Tesouro, responsável por distribuir dinheiro em nome de todo o governo federal. O acesso foi liberado por uma intervenção do secretário do Tesouro indicado por Trump, Scott Bessent, após uma negativa inicial por parte de um servidor.
Tanto no caso envolvendo o Departamento do Tesouro, quanto no caso da Usaid, quem entrou no caminho de Musk sofreu represálias. Funcionários das duas agências que impediram o acesso com base nos argumentos de confidencialidade foram afastados administrativamente dos cargos — um deles acabou pedindo aposentadoria. Também viraram alvo do bilionário nas redes sociais, onde ele possui 215 milhões de seguidores.
O método de pressão on-line e intimidação institucional está dentro de uma estratégia que Musk tem utilizado sem resistência do governo Trump. Uma fonte ouvida pelo jornal americano Washington Post afirmou que suas ações não são monitoradas de perto pelo presidente, mas que o republicano vê o aliado como alguém que cumpre o papel que lhe foi designado. Trump também avaliaria como positivo o fato de outra pessoa assumir a frente em determinadas medidas impopulares, sem que ele sofra o desgaste.
— Eu acho que Elon está fazendo um bom trabalho — disse Trump na noite de domingo. — Ele é um grande cortador de custos. Às vezes não concordamos com isso e não vamos aonde ele quer ir, mas acho que ele está fazendo um ótimo trabalho. Ele é um cara inteligente, muito inteligente, e ele está muito interessado em cortar o orçamento de nosso governo federal.
Preocupação com interferências
A atuação da força-tarefa de Musk e a abrangência do acesso a determinados sistemas foram apontadas por autoridades americanas como preocupantes, sobretudo o de pagamentos do Tesouro, que é responsável, entre outras coisas, pelo pagamento do seguro social e do Medicare. Interesses públicos e privados estariam em jogo.
Se por um lado os parlamentares argumentam sobre o risco do bilionário cometer ingerência sobre programas e prioridades de gastos decididas pelo Congresso, por outro argumentam que os dados e sistemas guardam informações sensíveis, incluindo dados de pagamento a empresas concorrentes de pessoas envolvidas na equipe de Musk, e informações de cidadãos americanos em geral.
"Estou alarmada que, como um dos seus primeiros atos como secretário, você parece ter entregue um sistema altamente sensível responsável por milhões de dados privados de americanos — e uma função fundamental do governo — a um bilionário não eleito e a um número desconhecido de seus lacaios não qualificados”, escreveu a senadora democrata Elizabeth Warren, que integra o Comitê de Finanças do Senado.
Uma das pessoas afiliadas ao Doge que agora tem acesso ao sistema de pagamentos é Tom Krause, diretor-executivo de uma empresa do Vale do Silício chamada Cloud Software Group, que compete com algumas das empresas contratadas pelo governo americano.
— Isso é completamente sem precedentes — disse Richard Painter, que serviu como advogado-chefe de ética da Casa Branca na gestão George W. Bush, em declaração ao Wall Street Journal. — Eu nunca vi nada parecido antes.
Em uma resposta aos relatos sobre o afastamento de funcionários do Usaid por negar acesso ao Doge, Katie Miller, uma funcionária da iniciativa Musk, afirmou que nenhum material confidencial foi acessado "sem as devidas autorizações de segurança". O novo procurador interino pelo distrito de Columbia, o ativista conservador Edward Martin, por sua vez, disse que tomaria “medidas legais” contra qualquer um que impeça ou ameace a equipe de Musk. (Com AFP e NYT)