Caçada LGBT+ de Putin: Onda de repressão contra gays transforma festas e clubes em alvos do governo
Presidente apresenta restrições como parte de uma cruzada pelos 'valores tradicionais russos'
A agência de viagens oferecia passeios voltados exclusivamente para homens. Foi o suficiente para atrair a atenção da polícia, que começava a aplicar as novas leis russas, castradoras dos direitos dos gays no país. Em uma noite de dezembro, policiais invadiram o apartamento do proprietário e o amarraram, como ele contou mais tarde no tribunal.
— Quinze pessoas vieram à minha casa à noite — disse o dono do negócio, Andrei Kotov. — Bateram no meu rosto, me chutaram e me deixaram com hematomas.
Kotov foi pressionado a assinar uma “confissão”: a de que ele administrava uma agência voltada exclusivamente para pessoas gays. Ele negou, mas os policiais continuaram batendo nele mesmo assim, enquanto repetiam: “Nada de viagens para gays”.
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Semanas depois, Kotov foi encontrado morto em sua cela. Tinha 48 anos de idade. Autoridades disseram à sua mãe que ele se cortara com uma navalha, informou ao New York Times sua advogada, Leysan Mannapova. A morte de Kotov ilustra de forma trágica a repressão cada vez mais dura na Rússia contra pessoas LGBTQIA+ e seus direitos, acelerada desde o início da invasão da Ucrânia pelo país.
Onda de repressão
O presidente Vladimir Putin apresentou aos russos as novas restrições — e a própria guerra, que já dura mais de três anos — como parte de uma cruzada pelos “valores tradicionais russos”. Em novembro de 2023, a Suprema Corte Russa designou o “movimento internacional LGBTQIA+” como “organização extremista”, em par com grupos armados, entre eles a al-Qaeda e o Estado Islâmico.
Desde então, ativistas LGBTQIA+, seus advogados e pessoas relacionadas a eles podem enfrentar penas de prisão de seis a até dez anos, em meio a uma onda de repressão, com a polícia invadindo casas noturnas e investigadores mirando cidadãos comuns, de acordo com pessoas da comunidade gay e organizações como a Human Rights Watch.
Pelo menos 12 inquéritos sobre acusações de “extremismo LGBTQIA+” foram abertos em 2024, de acordo com o grupo OVD-Info, de defesa dos direitos dos presos. Denis Olyenik, diretor-executivo da Coming Out, que apoia pessoas LGBTQIA+ , afirma que a pressão inicial se concentrou em grupos de direitos humanos e em ativistas. Mas isso mudou rapidamente.
— Agora, a repressão está chegando aos cidadãos, a quem vai aos clubes e festas. Atingiu inclusive o grosso da comunidade que se distanciava do ativismo.
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A homoafetividade foi descriminalizada na Rússia em 1993, impulsionando uma cena gay que incluía celebridades falando abertamente sobre sua sexualidade e o estabelecimento de clubes e grupos pop como o t.A.T.u., cujas duas integrantes fingiam ser um casal lésbico e representar a Rússia em competições musicais internacionais.
‘Propaganda gay’
Em 2013, no entanto, Putin sancionou uma lei vetando a disseminação do que descreveu como “propaganda gay” — incluindo “qualquer material que torne relações não tradicionais atraentes” — para menores. Em 2022, vieram as multas para quem promover “propaganda gay”. Um anos depois, a decisão judicial que levou à atual repressão.
Depois da prisão de Kotov, o agente de viagens, ele também foi acusado de produzir imagens de abuso sexual infantil. Durante uma audiência, em dezembro, um investigador disse ao tribunal que as imagens no telefone de Kotov provavam que ele cometeu “crime contra a ordem constitucional e a segurança do Estado”.
Algumas semanas depois, Kotov morreu. Dois dias antes, uma avaliação psicológica não revelou qualquer tendência suicida, disse sua advogada. A mãe de Kotov pediu aos promotores que prosseguissem com o caso.
— Não estava nada claro como organizar viagens para homens poderia ser considerado extremista — disse ela.
Não seria o único caso emblemático. Sergei Artyomov conta que, na noite após a Suprema Corte russa agir contra o movimento LGBTQIA+, ele e seus amigos enfrentaram uma batida policial em uma boate em Moscou. Os policiais bloquearam as saídas do local, ordenaram que os clientes ficassem de pé contra uma parede e anotaram seus dados.
Ninguém foi preso, mas Artyomov, que trabalhava como produtor de TV, conta que a experiência o abalou. Ele já estava pensando em se mudar da Rússia e a batida policial fortaleceu seu desejo.
— Não existe mais área cinzenta. Eles chamam você de inimigo do povo, e é isso.
Ele partiu pouco antes do Natal para a Espanha, onde conta ter obtido asilo.
A campanha liderada pelo Kremlin tem entre seus protagonistas grupos de justiceiros anti-gay, autoridades locais e a mídia estatal. Na remota Yakutia, no leste da Sibéria, o Pryany Yakutsk, canal popular no Telegram, alertou sobre “devassidão e corrupção de homens acontecendo bem debaixo do nariz das autoridades”. Publicou duas fotos granuladas de uma festa em uma boate retratando o que pareciam ser mulheres de seios nus, dizendo serem “artistas travestis” da Tailândia. Mais tarde, um tribunal multou o clube em 250 mil rublos, cerca de R$ 17.700, por violar a ordem pública ao “promover relações sexuais não-tradicionais”.
A Comunidade Russa, um grupo nacionalista que se diz formado por “justiceiros sociais”, também postou imagens de ações policiais “anti-gay”. No ano passado, divulgaram o vídeo de uma batida em uma boate em Orenburg, no sudeste do país, com vários jovens deitados no chão, de bruços, sendo presos.
‘As coisas vão piorar’
Mais tarde, um processo criminal foi aberto contra o proprietário, o gerente e o diretor de arte do clube, que ainda aguardam julgamento. A mídia estatal também bombardeia os russos com mensagens sobre as virtudes das famílias heterossexuais com filhos. No início do ano, Putin emitiu uma ordem para que o governo elaborasse uma estratégia para promover “famílias numerosas”.
Desde 2013, aumentou de 47% para 62% o número de russos contrários à equiparação de direitos para cidadãos LGBTQIA+, informa a empresa de pesquisas independente Levada. Outras sondagens mostram que os jovens russos ainda são muito mais receptivos às pessoas LGBTQIA+ do que os mais velhos. Por outro lado, aumentou a constância de matérias negativas contra pessoas gays na mídia russa no ano passado.
— E essa corrente de ódio contra pessoas gay e trans que continua jorrando em todas as mídias terá consequências — disse Tatyana Vinnichenko, veterana ativista LGBTQIA+ que vive exilada na Lituânia.
A comunidade trans foi alvo de uma lei de 2023 que proíbe o acesso a cuidados de saúde para transgêneros e a alteração de documentos oficiais. O aumento da repressão provocou um êxodo de gays e trans da Rússia, relatam os ativistas. Mas Tahir, um homem gay de 25 anos que pediu para seu sobrenome ser omitido deste texto por medo de processo criminal, afirmou que da Rússia ninguém o tira:
— Sei que as coisas vão piorar, mas não quero partir. Este país é meu tanto quanto de todos os outros russos.