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Regresso de Evo traria a violência de volta, diz pré-candidato boliviano

Mesa prepara-se para uma nova campanha, para uma nova eleição, que deve ocorrer no primeiro semestre de 2020

Carlos MesaCarlos Mesa - Foto: Jorge Bernal / AFP

O ex-presidente da Bolívia Carlos Mesa, 66, havia passado quase um ano em campanha antes do dia 20 de outubro, quando ocorreram as polêmicas eleições que culminaram com uma vitória questionada de Evo Morales e sua posterior renúncia.

Agora, Mesa, que conversou com a reportagem por telefone, de La Paz, prepara-se para uma nova campanha, para uma nova eleição, que deve ocorrer no primeiro semestre de 2020.

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As diferenças deste novo processo eleitoral são muitas, não apenas pelo fato de que Evo não estará na lista de candidatos, mas também porque o país passou por protestos, mortes, a chegada ao poder de uma presidente autoproclamada, além de distintas reações internas e externas.

Pergunta - Evo Morales insiste que, enquanto sua renúncia não for votada, há um golpe na Bolívia e essa nova eleição é ilegal. Qual a sua opinião?

Carlos Mesa - Essa tese da ilegitimidade de Jeanine Áñez é falsa, e eu nem considero mais que isso tenha de ser discutido, porque já estamos num novo processo que pode colocar fim a toda essa instabilidade, e é disso que o país precisa neste momento.

É certo que, pela lei, a renúncia teria de ser aprovada pelo Parlamento, mas isso deixa de ser um tema quando o presidente deixa o país e pede refúgio em outro. E agora já está num terceiro país. Está claro que abandonou o poder e não quer voltar. É um refugiado, como seu vice [Álvaro García Linera]. Portanto, não há mais que se votar sua renúncia.

O segundo argumento é que você não pode ter um país acéfalo por mais de um ou dois dias, e estávamos caminhando para isso. Se não se atuasse rápido, como o Parlamento fez, com os recursos que tinha naquela situação precária, o número de mortos e de abusos poderia ser muito maior. Não podíamos deixar um militar a cargo. Isso seria dar um golpe em nossa própria democracia.

Nesses dias de acefalia de poder, com as ruas militarizadas, La Paz viveu uma situação de violência, em que os cidadãos estavam muito amedrontados. O sr. crê que Evo quis provocar algo assim?

CM - Impossível que ele não tivesse calculado que a situação pudesse sair do controle, e mais, que ele poderia ganhar com isso, esperando que o chamassem de volta para resolver a tensão, sem se importar em quantos mais deveriam morrer até chegar a esse ponto.

O MAS (Movimento para o Socialismo, partido de Evo) ainda tem maioria no Congresso. Será possível levar adiante o país com tamanho poder ainda nas mãos de Evo?

CM - Não creia que ele tem o apoio de todo o MAS. O MAS não está fechado com Morales. Surgiram novas lideranças, o partido se renovou e há vontade de participar no novo processo.

É claro que há um núcleo duro fiel a ele. Mas passou muito tempo, uma nova geração do partido surgiu. E o que estamos vendo no Parlamento é uma vontade do MAS de fazer o país superar essa fase.

Tanto que as regras para a nova eleição, o novo Tribunal Eleitoral, estão contando com o voto do MAS para se realizar. E tem de ser assim, ou então estaríamos sendo antidemocráticos. No futuro político da Bolívia, o MAS tem de fazer parte.

Evo está agora na Argentina, justamente com a ideia de voltar para a Bolívia para influenciar a eleição. O que pode acontecer?

CM - Bom, há uma ordem de prisão contra ele, e creio que só voltaria se estivesse muito seguro de um acolhimento muito grande e sólido de seus apoiadores, além de uma garantia de impunidade.

E isso se perdeu. Sua base está rachada, mesmo entre indígenas, mesmo entre apoiadores que eram fiéis até outro dia.

Ninguém duvida de que ele é uma figura política de uma importância enorme na Bolívia, mas já não tem o mesmo apoio e a mesma capacidade de mudar o rumo do país.

Houve muita violência, muitas mortes. As pessoas não esquecem, e não vão querer o retorno de Morales porque sabem que ele pode trazer esse pesadelo de volta. Não creio que, se consiga voltar, seja recebido com grande alegria.

De todos os distúrbios na América Latina neste segundo semestre, como qualifica o da Bolívia?

CM - Foi o mais grave. Morales foi levado a renunciar não por um general, mas porque já não conseguia controlar uma violência terrível que havia tomado os dois lados por mais de 20 dias, que causava incêndios, escrachos, mortes, ataques, bairros isolados.

Mesmo o Chile, que está em situação delicada, e há mais tempo, não teve uma concentração de violência tão grande quanto a que houve aqui entre a renúncia e as semanas posteriores à posse de Áñez. Tivemos massacres coletivos. Em algum momento tudo isso será julgado, investigado e apurado.

Mas o Exército também cometeu abusos. A relativa paz de agora é porque a cidade está militarizada, não? Nos dias seguintes à posse de Áñez, ao olhar para o céu, era possível ver aviões militares dando rasantes pelo centro da cidade.

CM - A resposta das forças de segurança foi forte. Pode ter havido abusos, mas foi necessário atuar com força.

Você deve ter visto também como moradores cercavam suas quadras nos bairros de classe média com bloqueios de pedra, armados com fogo, armando suas próprias milícias caso apoiadores de Morales chegassem para queimar suas casas.

Como é possível não colocar as Forças Armadas para atuar quando a situação está assim? É triste que tenhamos chegado a esse ponto. Mas foi necessário. E agora temos algo de paz que creio que nos vai ajudar a chegar às eleições de forma organizada e republicana.

O sr. não crê que o que ocorreu nesse período tenha ferido a institucionalidade do país?

CM - A institucionalidade do país tinha sido destruída antes, por Morales. Com sua promiscuidade com o Judiciário, com o Tribunal Eleitoral que aprovou essa quarta candidatura inconstitucional. Agora temos a chance de reabilitá-la, de construir uma nova base institucional para o país.

A entrada de Jeanine Áñez no Palácio Quemado (sede do governo boliviano) com uma Bíblia na mão não foi um ato discriminatório num país de 60% de indígenas, multicultural e multirreligioso?

CM - Eu tenho uma visão muito cuidadosa em relação a esses símbolos.

Não foi uma atitude de conciliação nem um gesto acertado entrar com a Bíblia no palácio. Ainda que seja preciso entender também os que estavam havia muito tempo se sentindo mal com o elogio e a onipresença dos símbolos indígenas em todas as partes, que era o que Morales fazia. E que tampouco estava certo.

Estimular uma oposição entre wiphala [bandeira multicolorida que simboliza os indígenas] e Bíblia claramente está errado. Temos de lutar contra o racismo e não estimular essas divisões. Entendo em parte a euforia do uso da Bíblia naquela noite. Mas não estava certo esse gesto. Eu não teria feito isso. Tenho minha crença, mas ela é minha e preciso respeitar a do outro.

Como políticos republicanos temos de deixar clara a divisão entre igreja e Estado. E políticos têm de guardar suas crenças religiosas para sua vida pessoal. Parece até uma obviedade dizer isso, mas é real.

CARLOS MESA, 66

Presidente da Bolívia entre 2003 e 2005, foi jornalista. Estudou literatura na Universidade Mayor de San Andrés, é autor de diversos livros e membro da Sociedade Boliviana de História. Candidatou-se às eleições de 20 de outubro, canceladas por suspeitas de fraude, e já anunciou que vai concorrer no próximo pleito, em data a definir.

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