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No dia do Orgulho, a luta ainda é para poder viver

Com expectativa de vida curta e maior vulnerabilidade, mulheres trans têm dificuldade para chegar à terceira idade

Aos 65, Valéria é a mulher trans mais longeva do RecifeAos 65, Valéria é a mulher trans mais longeva do Recife - Foto: Ed Machado/Folha de Pernambuco

A expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos. Aos 65, Valéria Brasil viu as amigas morrerem ao longo do tempo. A primeira foi uma amiga, no interior de Alagoas, onde nasceu. Era o início dos anos 1960. Quando souberam que ela era trans, os homens da cidade acharam que ela se travestia para ver suas esposas sem roupa. Juntaram-se e a mataram com foiçadas.

“Cortavam os pedaços e iam jogando no rio em que descobriram que ela era biologicamente homem. Foi quando eu fugi de lá, com muito medo. Ela era minha amiga para tudo. Até aquele momento, o preconceito se limitava a vaias, a piadas, xingamentos e, quando íamos à feira, eles jogavam frutas. Bananas, laranjas podres. Eu tinha 12 anos”, lembra.

Ela sabe que é uma mulher trans desde os 8 anos. Quando chegou em Maceió, para onde fugiu, parecia uma menina cis, com cabelos longos e o corpo magro. Dormia embaixo dos ônibus na rodoviária. Taxistas a levavam em passeios com o intuito de estuprá-la. “Só descobriam que eu tinha pênis quando me tocavam. Mas isso não os impedia. Continuavam sem nenhum problema.”

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Procurou trabalho pela cidade e viveu em casa de família por alguns anos. Depois, veio ao Recife, onde se prostituía em avenidas como a Mário Melo ou a Antônio Falcão. As mulheres trans com quem dividia a rua naquela época, na primeira metade dos anos 1970, todas estão mortas. “Ou foram matadas ou contraíram algumas doenças. Eram assassinadas por preconceito ou porque roubavam os clientes”, conta.

Com o sucesso que fazia com os clientes, Valéria conseguiu morar por mais de 30 anos na europa. Teve sorte, numa vida diferente das amigas que ficaram pelo País. Nunca contraiu HIV, também. É extremamente satisfeita com quem é. “Nunca quis casar ou ter filhos. Se nascesse de novo, não queria ser mulher ou homem. Queria ser travesti, mesmo.”

Segundo o coordenador da ONG Grupo de Trabalhos em Prevenção Posithivo (GTP+), Wladimir Reis, a vida das mulheres trans no Brasil é abreviada por uma consequência do preconceito. “Não são aceitas pela família, pela escola, pela sociedade. Têm a prostituição, muitas vezes, como a única saída para sobreviver. A noite traz muito risco para essas pessoas.”

A Luta LGBTI+ em Pernambuco
A cultura de violência contra a população LGBTI+ no município de Cabo de Santo Agostinho, no início dos anos 2000, foi o que motivou o cabeleireiro Fernando Santos Rodrigues, 50, a iniciar o Grupo Homossexual do Cabo (GHC). Há 17 anos, a ONG foi a primeira a sediar uma Parada do Orgulho LGBT em Pernambuco. A conquista de direitos em cidades do Sudeste do Brasil, como São Paulo e Rio de Janeiro, serviu de referência para o cabense; que, por sua vez, serviu de referência para o resto do Estado.

“Não podíamos ir para uma discoteca que éramos espancados na saída. Quando meus amigos eram agredidos, ia na porta de todos os agressores, conversava com o pai e a mãe, mas com oito dias acontecia tudo de novo”, lembra Fernando. “O preconceito reduziu consideravelmente com a realização das paradas”, reflete. Em 2002, o ato reuniu mais de 8 mil pessoas e foi precursor do movimento que se estendeu por Recife e Região Metropolitana, Caruaru, Petrolina, dentre outros.

Contrários à realização, fundamentalistas iniciaram um movimento contrário. “Eles procuraram as rádios, ameaçaram nos apedrejar se fossemos às ruas. Com ajuda dos grupos Mulheres do Cabo e Leões do Norte, além do deputado Isaltino Nascimento tocamos.” Também em 2006, o município foi alvo de panfletagem de conteúdo homofóbico pelo suposto movimento skinhead Carecas do Brasil. Na época, a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco chegou a ser acionada pelo GHC.

“Não podíamos ir para uma discoteca que éramos espancados na saída”, conta Fernando Santos Rodrigues, diretor do Grupo Homossexual do Cabo

“Não podíamos ir para uma discoteca que éramos espancados na saída”, conta Fernando Santos Rodrigues, diretor do Grupo Homossexual do Cabo - Crédito: Acervo pessoal

Desde então, a ONG recebeu dois prêmios pelo Ministério da Cultura, nos anos de 2008 e 2009, pelo fomento à cultura LGBTI+. Como ativista, Fernando Santos Rodrigues, esteve ao lado do ex-deputado federal Jean Wyllys discutindo políticas públicas para a comunidade; celebrou o reconhecimento da união homoafetiva no plenário do Supremo Tribunal Federal, em Brasília, em maio de 2011, e acompanhou o início da votação pela criminalização da LGBTfobia na mesma casa, aprovada no último dia 13.

“Agora a gente tem respeito e espaço em tudo que é canto. Vejo os pais andando com filhos gays e lésbicas na rua, coisa incomum anos atrás. As meninas andam livremente, fazem ponto de prostituição tranquilamente, não são agredidas. Também ficamos nos barzinhos sem preocupação. Tudo começou por causa da parada”, avalia Rodrigues, que em parceria com órgãos do município e do Estado promove seminários sobre direitos humanos, LGBTfobia e prevenção sexual para a população.

Entretanto, destaca a necessidade de conquistar lugares em espaços institucionais, onde muitas vezes os agentes não conhecem na pele as marcas da comunidade. “Precisamos ocupar esses espaços e levar a vivência da rua, nossas experiências e histórias.” Cobra, ainda, o engajamento das novas gerações, que terão de pensar soluções para a pessoa idosa, a moradia para a parcela baixa-renda e a aposentadoria, visto que ainda há resistência do mercado para a contratação de pessoas trans, por exemplo.

Nascido em junho de 1969, o ativista lembra da Revolta de Stonewall, que no dia 28 daquele ano foi marcada pela rebelião dos frequentadores do bar Stonewall Inn, em Nova York, contra a repressão policial ao público LGBTI +. Considerada a primeira manifestação realizada pela comunidade no mundo, a data marca o Dia do Orgulho LGBTI+, celebrado hoje. “Da minha parte o que puder fazer para proteger a comunidade faço, afinal a conquista não é só para mim, mas, também, para as gerações que virão depois da minha.”

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