Folha Gastronômica

O livro de Apicius

Pesquisadora fala da obra de Marcus Gavius Apicius

O livro de ApiciusO livro de Apicius - Foto: Arte/Folha de Pernambuco

Visitamos a Biblioteca do Vaticano - uma das mais antigas do mundo. Fundada por Nicolau V (1448). Sendo transferida para o espaço atual - o Salão Sistino - por Sisto V, no final do século XVI. Tudo ali é grandioso. E deslumbrante. Um imenso salão (de 70m por 11m) decorado com pinturas renascentistas que abriga cerca de dois milhões de obras raras. Entre elas: manuscritos das primeiras bíblias, bilhetes de Michelangelo e de da Vinci, a capa que Botticelli fez para a Divina Comédia de Dante, autógrafos de Boccaccio e de Virgílio. E, sobretudo o manuscrito original do livro de culinária de Apicius. Uma grande emoção.

É que De re coquinaria é considerado o primeiro livros de receitas, propriamente dito, do Ocidente. Único dos tratados latinos que chegou até nós. Com algumas páginas de menos, é certo. O que temos hoje é uma versão dele, do séc. IV, provavelmente organizado por alguém não muito versado em culinária - “confundindo ingredientes e repetindo em dois locais diferentes a mesma receita”, como observou Inês de Ornellas e Castro. O livro passou a ser dividido em 10 capítulos - O cozinheiro Aplicado, Picados, O hortelão, Receitas diversas, Legumes de vagem, Aves, O Cozinheiro perdulário, quadrúpedes, Mar, O pescador. De re coquinaria foi escrito por um dos Apícios. Foram três os gastrônomos que assim se chamavam, na Roma antiga. E há sempre dúvida, em cada um de seus livros, sobre qual seria no caso o autor verdadeiro. Pela idade dos manuscritos, certamente não foi o primeiro deles - contemporâneo de Júlio César, que viveu bem antes. Nem o terceiro, de bem depois. Por conta disso deve ter sido mesmo obra de Marcus Gavius Apicius (30 a.C - 37d.C) - um aristocrata, filho de cavaleiro (eques), que passava o tempo bem longe dos cavalos do pai. Por preferir o ambiente da cozinha. Nela, criava receitas “demasiadas indigestas e sofisticadas” - segundo críticos da época. Usava ingredientes extravagantes - línguas de flamingo, de rouxinol ou de pavão, cristas de aves vivas e calcanhares de camelo. Entre as carnes, recomendava porco (em 70% das receitas). Especialmente leitão assado inteiro e órgãos femininos da porca, símbolos de mesa próspera. Também chouriços, presuntos, salpicões, salsichas, toucinhos. Tão importante era essa carne que Petrônio referia o paraíso como “lugar de abundância onde porcos assados passeavam livremente”. Depois do porco na sequência do seu gosto, vinham - cabrito, cordeiro e ovelha. Carne de boi muito raramente. E apenas os bois velhos e doentes. Que os novos eram poupados, por serem úteis para o trabalho no campo. Aves eram - abetarda, avestruz, faisão, flamingo, frango, ganso, grou (que tinham os olhos furados antes da engorda), papa-figo, pato, pavão, perdiz, pombo, rola, tordo. No livro são 108 as receitas de crustáceos, moluscos e peixes - atum, dourado, enguias (frita ou em escabeche), esturjão, moreia (cozido e grelhado), perca, raia, salmonete (normalmente usados em banquetes).

Como tempero usava intensamente azeite (que vinha de Liburnia), aipo, alho, anis, arruda, cebola, cerefólio, cominho, erva-doce, funcho, mel, orégano, pimenta, tomilho e vinho. Também recomendava temperos especiais, como garum (o mais requintado deles; preparado com vísceras de salmonetes), muria (vísceras e guelras do atum, fermentadas e misturadas com sangue e outros líquidos que escorriam do peixe) e allec (menos importante; que Catão aconselhava para alimentação de escravos). Em suas receitas refere ainda alguns vegetais - abóbora, abobrinha, alface (conservadas em salmoura ou xarope de vinagre e mel, para ser consumidas em qualquer época do ano), cenoura, chicória, ênula (agora transformada apenas em planta de jardim), malvas, nabo, rábano, urtiga. E grãos como ervilha, fava, grão de bico, lentilha. Quase sempre servidos secos, torrados e transformados em farinha. Além de frutas (ao natural ou secas) - abricoque, amêndoa, ameixa, avelã, cidra, figo (o mais consumido deles), damasco, maçã (crua, cozida, assada, seca), melancia, melão, noz, pêssego, romã, uvas. Muitas receitas do livro homenageavam lugares - molho de peixe à moda de Alexandria, salsichas da Lucania, frango à moda de Partos. Outras eram dedicadas a amigos ou personalidades que admirava - tachinho à moda de Lucrécio, minutal à moda de Apicius, papas de espelta à moda de Júlio, frango à moda de Frontão, leitão à moda de Vitélio. Ou recebiam nomes sem que se possa explicar o que significam - sala cattabia (palavras que não constam dos dicionários de latim; provavelmente herança do kandaylos, um prato da Lídia.), minutal (assim eram chamados por Apicius carnes, peixes e hortaliças muito picadas), patina (todos os pratos de consistência mole, cozidos nas “patinas” ou caçarolas).

Devemos a Apicius, ainda, a técnica de engordar gansos com figos secos para depois lhes aproveitar o fígado. Por conta disso iecur (fígado) passou a ser chamado de ficatum (de fícus, figo). A ele devemos também o Ars Magirica - primeiro estudo do uso de diferentes tipos de ovos na cozinha. E uma receita de creme doce, cozido lentamente em recipiente de barro com ovos batidos, leite e mel - base de muitas sobremesas atuais. Depois Apicius decidiu que não valia mais a pena viver. E morreu, literalmente, pela boca. Ingerindo veneno. “Tendo despendido na cozinha cem milhões de sestércios e dissipado em cada um dos festins inúmeros côngios principescos, pressionado pelas dívidas, viu-se então compelido a examinar pela primeira vez as suas contas; calculou restarem-lhe dez milhões e, como se assim ficasse reduzido a passar fome, pôs fim à vida envenenando-se”, escreveu o filósofo Sêneca (Ad Heluiam). O nome Apicius ficou para sempre associado à culinária. Tanto que virou expressão para designar cozinheiro ou glutão.

*É especialista em Gastronomia e escreve quinzenalmente neste espaço


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