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Opinião

A incrível capacidade do futebol brasileiro resistir no fundo do poço

Apesar de alguns momentos, no qual a crença seja mera consequência da paixão, há muito que minha porção de racionalidade e ética não se afina com esse escárnio, que se transformou o futebol brasileiro. Uma história que teve suas glórias nas quatro linhas dos campos, porque fora deles, o passado e o presente só o condenam

De pronto, vale enfatizar que a sociedade brasileira, por mais que reconheça suas especificidades, revela sua forma dissimulada de por abaixo do tapete uma carga brutal de preconceitos estruturais, sensos éticos duvidosos e improvisações desvirtuosas. Posturas e sentimentos que nos acomoda, mesmo diante de situações anunciadas de caos. Assim, por ser o futebol um importante elemento da cultura nacional, esse comportamento se dissemina, de um modo acomodado e confortável. Claro que a favor dos interesses do "status quo" estabelecido e empoderado.

De fato, o que se deu em campo, nesta segunda rodada da maior competição nacional, foi a consagração do fundo do poço de uma mediocridade generalizada, no que pode ser chamado de gestão no futebol. Não é só da convivência com a fragilidade em si, do que ainda resta chamar de "seleção brasileira", aquele agrupamento de atletas medianos. Pior que isso é constatar que o futebol brasileiro padece, na sua suposta organização geral e dadas suas competições, da falta de resposta, na suas credibilidade e ética. Escândalos que envolvem atletas e, sobretudo, as polêmicas frequentes derivadas de erros crassos de arbitragens, viraram situações de rotina.

Tamanho abuso é um ofício de dimensão histórica. Sofrem os clubes que estão fora do eixo e que são ainda os melhores exemplos da perversa desigualdade na distribuição das rendas. Ou seja, se já não são tais clubes
competitivos por terem bem menos recursos, quando são capazes de ameaçarem uma mínima hegemonia, sofrem retaliações com arbitragens mal intencionadas. Nos jogos, são sequências de infrações invertidas e desbalanceadas, até se chegar a marcação de penalidades máximas inexistentes. Aliás, fatos que aconteceram nos dois jogos recentes do Sport e que contou, inusitadamente, com interpretações viesadas, mesmo quando os recursos tecnológicos do VAR mostrassem o contrário. O gol de pênalti que validou a injusta vitória do Palmeiras inaugurou a “era do assalto eletrônico” a serviço dos empoderados do futebol.

Repito que esse problema que macula o quadro de arbitragem do Brasil tem nele sua ressonância histórica.
Nunca foi de hoje e tem servido para dar apenas consistência para um padrão de gestão que nunca deveria
ter sido compactuado pelos clubes. O modelo segue errado e vem de décadas. Todos agentes sociais envolvidos com o futebol foram - e ainda são - coniventes. Dirigentes, imprensa e até atletas sempre foram tolerantes com tantas evidências de descasos. Antes, o assunto era resolvido na “porrada”. Com revólver à mostra na cintura ou posto em cima da mesa. E nisso todos se calavam. Até achavam o máximo, talvez pelo sentido folclórico, que assim funcionava como mera ameaça. Foi o primeiro estágio de uma conivência funcional. Mas, a essência do problema tem resistido até hoje.

O desmantelo persiste porque todos envolvidos, indistintamente, seguiram com a tolerância a esse modelo
perverso, de por para rodar o futebol brasileiro.

27 Federações e 40 clubes aculturados por esse modelo histórico. Sem qualquer esforço planejado, estrategicamente, em nome de uma ruptura necessária e real.

Esconder esse passado de conivência pacífica com o desastre das gestões, não pode ser algo ignorado. Querer agora dizer que um ou outro clube, por ter votado pela manutenção do modelo, seja tratado como a razão do
problema é pura hipocrisia e pode representar um disfarce sutil de todo preconceito arraigado. O que levaria
qualquer clube dos 40, num ato solitário, jogar-se contra uma maré instaurada? Direto ao ponto: que adiantaria navegar sozinho contra seus 39 concorrentes e votantes? Esse ato isolado poderia ser suicida, mostrar-se contrário ao clube, pelas prováveis retaliações. E isso seria cobrado pelos mesmos torcedores que hoje se precipitam nesse juízo de valor equivocado. Nada que motivações políticas e acomodações sistêmicas não sejam o suporte para esse argumento tão reduzido quanto hipócrita.


Diante de tudo isso, acho que o buraco é bem mais embaixo. Só uma intervenção pública, pelo sentido do
interesse coletivo e em nome de uma cultura estabelecida, poderia ser uma luz básica para se iniciar a ruptura
desejada. Nada mais do que isso, por pouco provável possa acontecer, no curto prazo.

27 Federações e 40 clubes ratificaram o que persiste há décadas, de tal modo que sem uma mobilização articulada não havia (e nem há), infelizmente, como mudar. Trata-se de uma sólida e resistente estrutura que, mesmo encarada pelo termo "gestão", tem gerado a desorganização que mancha o futebol brasileiro. Com a conivência histórica de todos envolvidos, direta e indiretamente. Pena que o fato recente de termos ganho duas Copas, tenha encoberto tanta incompetência.


Agora, é muito fácil se fazer uso de um discurso político recheado de hipocrisia, quando a dura realidade
pede pela:
- revogação de um sistema antigo, absolutamente,
carcomido;
- convocação do Parlamento, enquanto via para se conseguir mudar, por mais que se tenha em conta a infame
"bancada da bola", como possível peça de resistência; 
- garantia de acesso às contas das federações e da CBF,

Portanto, mesmo no fundo do poço, o buraco é bem mais abaixo. Que o assalto promovido em plena Ilha do
Retiro, no jogo do Sport contra o Palmeiras, sirva de estopim para mudanças verdadeiras. E não só ficar na velha tática discursiva de olhar para o problema de modo pontual, quando as raízes históricas mostram outra ordem de grandeza. 

Falta coragem para mudar e daí salvar o que ainda resta do futebol brasileiro.

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