IAHGP recepciona Cervantes e Dom Quixote - 1ª Parte
Recife, 26/04/2025. Neste ensolarado sábado, pela manhã, com ética, honra e reciprocidades, conforme os princípios da ordem das cavalarias andantes e do Dom Quixote e Sancho Pança, estivemos no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano - IAHGP, atendendo ao convite do presidente da instituição, o historiador, professor e acadêmico George Cabral, para, no clima da semana do Dia Mundial do Livro, proferir uma conferência no “Ciclo de Palestras do IAHGP 2025”. Cervantes e Dom Quixote (420 anos) - Conexões com a História, foi o assunto e título definidos.
O IAHGP, no alto de seus 163 anos, o mais antigo Instituto Histórico estadual do Brasil e o segundo dedicado à História nacional, depois do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB, possui um rico acervo, organizado em museu, arquivo, pinacoteca e biblioteca, instalado em um belo casarão, no bairro da Boa Vista. Dentre as suas atividades, está a de dialogar com a sociedade por meio da cultura, observando a evolução da História e a inter-relação dos fatos. E assim procedemos, para falarmos de Cervantes e Dom Quixote.
No início da sessão, onde a austera ambientação do auditório remetia aos primórdios do cervantismo, esclarecemos que a apresentação estava dividida em duas partes: a primeira, sobre a vida de Cervantes, e a segunda sobre o enredo do Quixote, atentos a alguns aspectos do passado e do presente, no sentido amplo da História, como segue.
1ª Parte - Miguel de Cervantes Saavedra (29/09/1547, Alcalá de Henares - 23/04/1616, Madrid).
Entre os grandes nomes da literatura mundial, Cervantes é visto como um dos que menos rastro deixou sobre a própria existência. O professor, escritor e cervantista francês Jean Canavaggio, considerado um dos seus melhores biógrafos (para muitos, o melhor), afirma que Miguel de Cervantes trata-se de [...] “um homem cuja intimidade nos escapa de forma irremediável”.
De origem pobre, Miguel foi o quarto irmão de uma família de sete, sendo três mulheres. Num tempo em que pouquíssimas pessoas sabiam ler e escrever, ele foi levado à escola. Com os estudos, melhorou a condição para ter uma vida mais favorável… Essa foi a sua primeira superação, um diferencial humano que lhe ajudou ao longo da vida entrecortada de adversidades. A capacidade de superação interveio nos seus bons e maus momentos.
Aos 22 anos, ao ferir um desafeto, Cervantes foge de Madrid para a cidade de Roma, sendo condenado à revelia.
Na Cidade Eterna, trabalhou, por pouco tempo, para o cardeal Giulio Acquaviva. Preferiu alistar-se nas tropas da Santa Liga que estavam sendo formadas, entre os estados e reinos católicos, para combater o Império Otomano que avançava no domínio das regiões do Mediterrâneo.
Soldado, participou da vitoriosa batalha naval de Lepanto, na Grécia, em 07/10/1571, em que a Santa Liga derrotou os otomanos; uma das maiores da História, fundamental à geopolítica do ocidente. Um herói. Lutou bravamente, em cima da galera La Marquesa. Da batalha saiu ferido ao receber três tiros de arcabuz, um deles inutilizou sua mão esquerda. Após se recuperar dos ferimentos, participa de mais duas batalhas, a de Navarino (1572), perdida, e a de Túnis (1574), ganha.
Cansado de batalhas, pede baixa da Santa Liga para regressar à pátria. Quanto ao estágio de Cervantes nos lugares da atual Itália, é visível que ele desfrutou muito bem da cultura local, ao ponto de ela refletir na literatura e no teatro do autor, anos depois.
No caminho de volta à Espanha (1575), a galera em que viajava, El Sol, é assaltada por corsários berberes e os passageiros presos são levados para Argel. Cervantes passou cinco anos como escravo “de valor” (possui carta de recomendação de seus superiores na Santa Liga). Com quatro tentativas de fuga dos assustadores cárceres de Argel, não se sabe como escapou da morte. Foi resgatado por meio de ações dos padres Trinitários. Chega de volta à Espanha em 1580. …Esses acontecimentos também refletiram em seus escritos.
Acomodado na terra nativa, uma sucessão de fatos ocorrem com Cervantes, ao buscar viver regularmente… apesar da adversidade não lhe dar sossego:
- Com o advento da União Ibérica, ele é chamado para um trabalho de “espião” na África, em Oran, onde havia uma disputa (1581). Ao retornar à Espanha, casa-se com Catalina de Salazar (1584), na cidade de Esquivias, e nela decide morar. Essa ideia não prosperou.
- Em 1585, publica o seu primeiro livro, A Galatea, uma novela pastoril, dando início à carreira de escritor.
- É contratado como comissário de abastecimento da Invencível Armada (1587 - 1588), uma missão de muitos atropelos, com os agricultores e a igreja.
- Foi-lhe negado um pleito realizado a fim de ocupar uma das vagas na América espanhola (1590), para sua frustração. No entanto, como dizem, salvaram o escritor.
- Sofre três prisões: em Castro del Rio (1592 - possível falha em arrecadação); em Sevilha (1597 - possível bancarrota de um banco depositário); em Valladolid (1605 - suspeito pela morte de uma pessoa). No fim, foi absolvido em todos os casos.
- Publica O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha (I Parte, 1605). O livro teve sucesso imediato e não demorou para ser traduzido para outras nações.
- Publica Novelas Exemplares (1613), com boa aceitação dos leitores.
- Publica O engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha (II Parte, 1615). Repetiu-se o sucesso do primeiro volume. Antes disso, surgiu um livro apócrifo de Dom Quixote, situação que gerou um grande aborrecimento ao autor verdadeiro.
A bibliografia cervantina é pequena, cinco livros. Além dos já citados, publicou Viagem do Parnaso (1614) e Os trabalhos de Persiles e Sigismunda (póstuma). Também foi dramaturgo, mas sem o mesmo brilho da engenhosidade quixotesca.
No auge do Século de Ouro espanhol, ao conviver com expoentes da poesia, da prosa e do teatro, gênios, Quevedo, Lope de Vega, Góngora, Tirso de Molina… sofreu preconceitos; entretanto, seu nome, hoje, está em um patamar superior e é o mais conhecido, em todo o mundo.
Cervantes faleceu aos 68 anos, uma idade elevadíssima, o dobro da expectativa de vida à época. Partiu vestido com o saial franciscano. Era membro da Ordem Terceira. Foi enterrado no Convento das Trinitárias, no bairro de Las Letras, no centro de Madrid.
Com os créditos do livro dos livros e do pioneirismo do romance moderno; de herói de guerra; ademais do exemplo de perseverança, Cervantes entrou para a eternidade com seu nome gravado na História Universal.
Quem melhor descreveu Miguel de Cervantes, apelidado pelos compatriotas de “Manco de Lepanto”, pelo ferimento que inutilizou a sua mão esquerda na histórica batalha, foi Luis Astrana Marím, um dos maiores estudiosos cervantinos, de enormes produções… “Cervantes revela-se um homem, ou melhor, um super-homem, que vive e morre abraçado com a humanidade”.
* Membro da Asociación Internacional de Lectores y Coleccionistas de Don Quijote (MX). Autor do livro “Sonho Impossível - O Recife e Cervantes” (2024)
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