Leão XIV, o Papa norte-americano que fala espanhol. Ou a continuidade que é descontinuidade
“Sem medo, unidos”.
Papa Leão XIV, da sacada do Vaticano, no seu primeiro pronunciamento público.
Temos Papa. Nenhum dos mais cotados. Mais uma vez, a Igreja surpreende. Sábia Igreja. Uma tarde romana. Poderia dizer vaticana. Mas, o Papa é, antes de qualquer coisa, o bispo de Roma. E Roma tem um escritor que descreve magnificamente as tardes romanas. Alberto Moravia. Então, homenageemos Roma. E Moravia. Numa magnífica tarde romana, nasceu um Papa. Que Papa é Leão XIV ?
O cardeal Robert Prevost, ungido Papa, é norte-americano. Natural de Chicago. Terra de Barack Obama. Tem 69 anos. Assumiu a cidadania peruana. Tendo residido no Peru por vinte anos. Em tarefa missionária. Ou seja, o Papa é americano duas vezes. Norte-americano. E latino-americano. Não é uma redundância. É uma amplificação. Cidadã. Étnica. Qualitativa.
Optou pelo nome de Leão XIV. O que denota uma filiação à linha social inaugurada por Leão XIII. Que, em 1891, lançou a encíclica Rerum Novarum. Diante do desafio da revolução industrial. Que surgia na Inglaterra. A encíclica acentuava a necessidade de proteger os trabalhadores. E de inserir o Direito do Trabalho no universo do capitalismo. Isto quer dizer que Leão XIV está mais para a visão pastoral de Francisco. Do que para a ênfase dogmática de Bento XVI.
A experiência pastoral do novo Papa é única. Porque vivida num país do fim do mundo. Para usar a expressão de Bergoglio. Convivendo com a pobreza. Com as carências de comunidades sofridas. Absorvendo o vocabulário da escassez. E o incorporando, como gramática amorosa, no coração. E porque, ao fazê-lo, transforma o sentimento em ação. O sentir passa a ser bússola emocional. E o agir se torna prática missionária. Tanto que ele não esqueceu no discurso inaugural de saudar sua estimada comunidade peruana.
O novo Papa é da ordem Agostiniana. Os livros mais conhecidos de santo Agostinho são As Confissões e Cidade de Deus. Mas, há um outro, raro e valioso, intitulado A mentira, contra a mentira (Editora Paulus, 2019, São Paulo). No texto, Santo Agostinho escreveu: “Mentir é um grande problema. (...). É imprudente pensar que se possa mentir de forma honesta ou por misericórdia”. Este livro é uma referência para medir o rigor moral dos Agostinianos.
Mas, há um aspecto da escolha de Prevost que merece reflexão. Por que eleger um cardeal norte-americano, missionário, conciliador, no cenário histórico em que o presidente estadunidense é um populista cercado de plutocratas, Donald Trump? Penso que esta foi mais uma demonstração da milenar sabedoria da Igreja. Do pensamento estratégico do Vaticano. Nenhum outro Papa teria, como ele, as condições pessoais e políticas para enfrentar a retórica agressiva de Trump. Um compatriota.
Sob este aspecto, os cardeais parecem ter acertado. Porque o presidente norte-americano, apenas duas horas depois do anúncio de Prevost como novo Papa, escreveu: “Gostaria muito de conhecê-lo”. Leão XIV é uma continuidade papal que é uma descontinuidade política. Basta ver a estola que ele usou ao se apresentar ao público na praça de São Pedro. Basta observar a solenidade de gestos. De qualquer modo, o novo Papa, quando ainda cardeal, criticou o vice-presidente norte-americano. Que pretendeu hierarquizar o amor. Para desmerecer a política de apoio à migração.
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