O bom burocrata, um revolucionário ao contrário
Não sei se foi um sonho ou pesadelo? Noite dessas, o filme “O Bom Burguês” assistido muito tempo atrás; o livro “Os Donos do Poder” sempre revisitado por mim e o livro “O Idiota”, que acabara de ler, mesclaram-se num sonho estranho. Uma estória sonhada, talvez sem muito “pé nem cabeça” de uma República onde as revoluções não eram feitas para mudar, mas para garantir que nada mudasse, seria algo “Lampeduseano”, “Il Gattopardo”? Foi mais ou menos assim.
Numa certa terra tropical, de sol ardente e impostos igualmente incandescentes, um grupo seleto de homens e mulheres ocupavam os mais altos postos de um funcionalismo público e político, algo muito estranho pois todos eram ricos, muito ricos à despeito do populacho.
Vestiam-se com grifes “John John, Lacoste, Bvlgari, Hugo Boss, Ricardo Almeida”, as que identifiquei entre homens e mulheres, mas que teciam o costume daquela aristocracia mais que monárquica, algo “impero republicano”. Eram ministros, governadores, prefeitos, vereadores, juízes, promotores, auditores, burocratas de carteirinha, deputados, políticos em geral — os verdadeiros arquitetos do destino daquele estranho país. Chamavam-se de “guardiões da república e da democracia”, mas, no fundo, sabiam que seu verdadeiro papel era outro: garantir que a estrutura de seus privilégios jamais fosse abalada.
Não por maldade, é claro apenas porque acreditavam, piamente, que sem seus auxílios-moradia, sem suas férias prolongadas, sem seus penduricalhos salariais, planos de saúde especialíssimos, carros pretos, passagens aéreas, voos exclusivos, a civilização como a conheciam e imaginavam ser real, ruiria em questão de dias e isso, meus amigos, isso não! O grande inimigo desses personagens não era o crime organizado, nem a corrupção endêmica. Era algo muito mais perigoso: qualquer tentativa de mudança real.
Afinal, haviam dado voz ao “senso comum” dos que nunca puderam gritar e esses não sabem o que falam, precisam de filtros e correções que lhes diga o que é certo ou errado. Tudo ia bem até que, certo dia, surgiu um “idiota” ousado, capaz de importunar a todos, de todas mais diversas ideologias, uma espécie de unanimidade ao contrário.
Alguém que, movido por um impulso inexplicável, resolveu propor algo radical: que os mais ricos que recebessem qualquer recurso público (funcionários e políticos) teriam que obrigatoriamente pegar ônibus, ser atendido pelo sus e se aposentar, no máximo, pelo teto da previdência social. Que os privilégios vigentes fossem cortados imediatamente para todos. Que os gastos da máquina pública fossem equilibrados, mensalmente, por uma IA capaz de equilibrar tempo de trabalho de cada um para o benefício geral.
Uma ideia revolucionária, sem dúvida, para a máquina pública naquele sonho. Mas foi aí que começou a contrarrevolução, com sua Estratégia da Resistência, “Resistir Sempre”. Os guardiões da ordem reuniram-se às pressas em salões de mármore, entre cafés servidos por garçons engravatados e taças de vinho adquiridas com verbas de representação. Era preciso agir. Primeiro, veio o plano da complexidade jurídica.
Redigiram novas normas, mais densas e enigmáticas que um tratado medieval. Criaram regramentos que apenas eles poderiam interpretar e, claro, fizeram questão de levar qualquer tentativa de reforma para um labirinto de instâncias judiciais. A lógica era simples: se a mudança é inevitável, então que ela jamais aconteça e se antes já dissemos algo, que mudemos, a república tem que continuar! “Estamos do lado certo da história.” Depois, veio a inflação do Estado.
Criaram-se conselhos, comitês e secretarias. Cada um deles necessário, é claro, composto por servidores competentes, bem pagos e absolutamente comprometidos com a missão de garantir que absolutamente nada saísse do lugar, quanto mais gente ganhando, melhor, pois muitos passariam a depender mais deles mesmos.
O terceiro passo foi o terror retórico. Em longos discursos e entrevistas coletivas, explicaram à nação que qualquer tentativa de corte de privilégios era, na verdade, um ataque às instituições. O povo, que mal entendia como funcionava a engrenagem, engoliu o argumento como quem aceita uma explicação técnica sobre um avião em pane. E então, como golpe de misericórdia, acionaram o poder da judicialização total.
O Executivo tentava mudar algo? Liminar! O Legislativo aprovava uma lei ousada? Suspensão imediata! A opinião pública começava a entender o que estava acontecendo? Soltavam um artigo técnico em latim jurídico, repleto de expressões incompreensíveis, e o debate logo se dissolvia em fumaça. A população e quem produzia riquezas, perplexos, acompanhavam a movimentação, pagando seus impostos com a mesma resignação com que se aceita um dia nublado na praia. Para os que estavam no topo da pirâmide burocrática, tudo era apenas um jogo. E eles jogavam muito bem. O idiota reformista? Acabou engolido.
Suas propostas, convertidas em pilhas de processos. Seu discurso, desacreditado por parecer “simplista demais” diante das complexidades do direito administrativo. No final, os guardiões da ordem ergueram suas taças, brindando em nome da democracia. "A justiça foi feita!", disseram, satisfeitos. E assim, naquela terra tropical, a revolução mais bem-sucedida foi aquela que garantiu que nada, absolutamente nada, mudasse. Acordei, “e fui dançar um tango argentino”.
Da janela de minha casa, um carro preto, de algum órgão, com alguém engravatado dentro, parou no engarrafamento, enquanto um carroceiro, acompanhado de um cachorro magro, recolhia papéis e latinhas. Tomei café, e fui trabalhar.
* Advogado especialista em Transformação Digital e Direito Autoral.
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