STF, o "Poder Moderador" às avessas
Aos olhos desprevenidos, a liminar do ministro Alexandre de Moraes — que suspendeu simultaneamente os decretos presidenciais de majoração do IOF e o Decreto Legislativo 176 que os havia sustado — soa conciliatória. Voltou-se ao status quo ante, todos ganham tempo, ninguém sai humilhado. Mas o que parece diplomacia institucional revela, em verdade, mais um passo na lenta metamorfose do Supremo Tribunal Federal em poder moderador — função que a Constituição de 1988 jamais lhe confiou.
1. Quando todos fogem da arena própria
O enredo começou com o Executivo convertendo tributo eminentemente regulatório em caixa fiscal. Reconhecida pelo próprio relator a “dúvida séria” sobre a finalidade extrafiscal do IOF, o Congresso exerceu sua competência exclusiva do art. 49, V, sustando o abuso presidencial. Até aqui, freios e contrapesos funcionaram.
O problema surgiu quando todos decidiram transferir o impasse para o Judiciário. Antes mesmo da decisão do Congresso, o PL ajuizou ADI buscando anular o aumento; posteriormente, o PSOL atacou a sustação, levando a derrota do governo ao STF; depois disso, o próprio governo acionou o Supremo para salvar seus decretos. Três peças, uma coreografia: deslocar para a Praça dos Três Poderes o que deveria ter sido resolvido nas dependências do Congresso ou do Planalto.
Essa peregrinação forense é a fonte indireta — mas potentíssima — da expansão das competências reais (e não apenas formais) do STF. Cada Ação Direta protocolada é convite a que o Tribunal decida onde termina a discricionariedade política e começa a inconstitucionalidade. Convidado tantas vezes, o árbitro acaba transformado em protagonista.
2. A vitória formal do Congresso e a derrota simbólica
É inegável que, no plano material, a liminar de Moraes resultou exatamente no que queria o Parlamento: alíquotas antigas, sem aumento. Contudo, ao suspender também o Decreto Legislativo 176, o ministro esvaziou a vitória política do Congresso e sinalizou que a palavra final caberá ao próprio STF.
Do ponto de vista da engenharia constitucional, o art. 49, V é claro: compete ao Congresso sustar atos normativos do Executivo que exorbitem do poder regulamentar. O decreto presidencial excedeu; logo, sustação era juridicamente suficiente e democraticamente legítima. Ao optar pela “moderação simétrica”, o relator na Corte substituiu um remédio textual, simples e definitivo, por uma solução provisória e dependente de futura comprovação técnica do Ministério da Fazenda. Abriu-se o precedente: sempre que houver choque entre Planalto e Congresso, valerá levar o conflito ao Supremo — afinal, lá se obtém o confortável empate.
3. Judicialização versus ativismo: a falsa dicotomia
Não se trata de acusar o ministro de ativismo exacerbado. A decisão é, antes, exemplar de judicialização da política: o Tribunal foi provocado e respondeu. Entretanto, ao responder como moderador — suspendendo ambos os lados e convocando audiência de conciliação — acabou por engendrar novo ambiente de disputa, desta vez tutelado judicialmente. O risco? Transformar o STF em mesa de negociação permanente de crises políticas, o que incentiva atores a pular etapas de deliberação legislativa ou de diálogo federativo.
4. O perigo do precedente
A Constituição de 1988 nos legou um Judiciário forte. Mas forte para guardar a Constituição, não para amortecer todas as colisões entre Executivo e Legislativo. Se cada impasse político for convertido em capítulo de controle abstrato, duas consequências se seguirão:
1. Responsabilidade diluída — Quando tudo passa pelo STF, quem responde perante o eleitor pelas escolhas de política econômica?
2. Estagnação decisória — Liminares congelam normas; julgamentos definitivos levam anos. Enquanto isso, a economia — e especialmente os mais pobres, sobrecarregados por juros altos e tributos mal calibrados — paga a conta.
5. Conclusão
O Congresso acertou ao sustar um uso indevido do IOF; PL e PSOL erraram ao recorrer ao STF. O governo errou ao transformar instrumento regulatório em arrecadação e, depois, ao recorrer ao mesmo STF para reverter uma acachapante derrota. O Supremo, enfim, errou ao escolher a toga de árbitro diplomático quando bastaria aplicar, com frieza, o art. 49, V, dando razão ao Congresso.
Se essa trilha persistir, cada desacordo político se tornará disputa constitucional; cada disputa constitucional, audiência de conciliação; e cada audiência, mais poder moderador para a Corte.
Ao proclamar uma “trégua perfeita” que satisfaz Executivo, Legislativo e, sobretudo, o próprio Tribunal, o STF consolida-se como poder moderador “às avessas”. É um conforto perigoso, pois converte cada crise política em litígio constitucional e afasta-nos do modelo republicano de responsabilidade direta. O equilíbrio entre os poderes, parafraseando Montesquieu, exige que cada um aceite os limites — inclusive o de perder — sob pena de transferir ao Judiciário o ônus de governar sem mandato popular.
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