Os bons samaritanos da Boa Vista
Nas calçadas do Pátio de Santa Cruz, mulher recebeu ajuda após muitos indiferentes negarem amparo
Imagine uma pessoa do seu círculo social agonizando em uma calçada, sob o sol do meio-dia. A cena é avassaladora. O suor intenso denota a grave desidratação e o rosto se deforma com a dor que tenta exprimir em gritos quase mudos. Agora imagine nesse lugar uma desconhecida negra, portadora de distúrbios mentais e em situação de rua. Seu sentimento muda?
A segunda situação - que, em geral, chama pouca ou nenhuma atenção - é frequente no Centro do Recife, onde moradores de rua mais se concentram. De acordo com os populares, quase sempre alguém para e ajuda. Nesta terça-feira (12), às 12h, em frente à Igreja de Santa Cruz, na Boa Vista, foram três integrantes da Fraternidade O Caminho, que existe há 15 anos na América Latina e tem ligação com a Igreja Católica.
No colo, uma mulher em aparente surto psicótico foi levada para uma calçada à sombra e acolhida até se restabelecer. Antes, contudo, dezenas de pessoas passaram pelo local, indiferentes em vários níveis às súplicas, aos espasmos e até ao busto despido.
“Não há ato de heroísmo em amparar alguém. Esse deve ser o cotidiano. O que deveria ser comum se tornou extraordinário”, opinou um dos que ajudaram a mulher, o frei Servo do Amor Chagado, 32. “As pessoas têm esquecido do que são feitas. Muitas têm preconceito ou medo de ajudar o outro. Acho que aprender a ser humano é um passo que não está sendo dado. A sociedade é feita hoje por robôs, em sua maioria. Não sabem a última vez que abraçaram os membros da família ou olharam em seus olhos verdadeiramente. Mas estão se comunicando freneticamente com alguém distante pelo Whatsapp.”
Apesar de atual, a dificuldade de olhar para o outro não é nova e parece inerente ao humano. Tanto, que é justamente sobre ela que trata evangelho do último domingo, a parábola milenar do Bom Samaritano. “Quem é o próximo que se deve amar? É essa pessoa que está do nosso lado. Isso não é percebido. Escolhe-se quem vai ser o próximo de acordo com a conveniência”, criticou frei Servo.
Além de abrir mão do nome de batismo, os membros do PJC também são avessos à exposição. Para eles, essa seria uma forma de alimentar a vaidade por atos que julgam ser naturais. É a “síndrome de heroísmo” que esconde o quanto são frágeis.
E a questão é levada a sério também por Cristiano, que moveu nos braços a mulher aflita para um local sob a sombra. Ex-dependente químico, foi reabilitado pelo Instituto. Sabe o que é viver nas ruas e pôde se identificar com a desconhecida com uma facilidade não partilhada com os transeuntes apressados. Tanto ele quanto frei Tobias, o terceiro bom samaritano, preferiram o recolhimento a falar com a Folha de Pernambuco.
Já a mulher em suposto surto, teve os pés “lavados” porquanto os samaritanos tentavam diminuir a alta temperatura do seu corpo. Foi abraçada e amparada até que se acalmou. Pôs-se de pé e seguiu só pela rua, sem dizer palavra que fosse cognoscível. “Durante aquele tempo, ela se sentiu amada. É nisso que pensamos e não em heroísmo.” O Samu, apesar de chamado, não apareceu.
Recorrência
Aproximadamente 20% das pessoas em situação de rua no Recife sofrem com distúrbios mentais. São cerca de 200, de um total de 976, de acordo com o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento dessa população. Mas todos sofrem mentalmente. “Pela própria vulnerabilidade, há uma dor psíquica”, explicou a psicóloga e coordenadora do Programa Consultório na Rua da Prefeitura, Brena Leite.
A política pública do Ministério da Saúde mapeia e monitora os moradores com intuito de prover qualidade de vida, mesmo em situação de rua. “Com eles, a dificuldade é maior. Precisamos de várias visitas até que consigamos uma vinculação. É uma conquista, para confiarem e aceitarem encaminhamento de saúde necessário.”
Leite alertou que é possível falar diretamente com a coordenação do programa pelo telefone (81) 3355-2810, mas ele não deve ser acionado para emergências. “Não há uma equipe para essas situações. Trabalhando com planejamento.” Nesses casos, o Samu deve ser acionado. Ou a Polícia Militar, principalmente se houver perigo de a pessoa se machucar ou ferir alguém. “Lembro que trabalhamos apenas nas RPAs 1 e 6, que compreendem, o centro e o litoral, as praias. Exatamente porque são nessas áreas que os moradores de rua mais se concentram.”