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Pandemia vai nos ensinar a lidar com a incerteza, diz Viviane Mosé

Filósofa e poeta capixaba conversou com a Folha de Pernambuco sobre o mundo pós-coronavírus e as crises política e econômica. Para ela, infecção suspendeu a máquina da civilização humana.

Viviane MoséViviane Mosé - Foto: Chico Cerchiaro/Divulgação

A pandemia da Covid-19 pôs em xeque todo o modo de vida que se conhecia, modificando a rotina e desafiando o sistema econômico e político. Para a filósofa, psicanalista e poeta Viviane Mosé, a crise gerada pela doença provocou uma quebra no modelo de civilização que a humanidade desenvolveu ao longo da história. Em entrevista à Folha de Pernambuco, a pensadora capixaba falou sobre o mundo pós-coronavírus, como as pessoas podem se fortalecer diante da incerteza e que tipo de sociedade poderá ser construída daqui para a frente.

A pandemia do novo coronavírus nos leva a um momento de incerteza extrema em que não sabemos nem se estaremos saudáveis no fim do dia. Como cada pessoa pode pensar no seu amanhã?
A pandemia suspendeu a máquina da civilização. Hoje estamos desmontados no mundo, não só no Brasil, porque a máquina é uma só: o capitalismo internacional. E nós não temos ideia de como a máquina da civilização vai se reordenar. Aos poucos, vamos percebendo. Eu imaginei, nos primeiros 15 dias, que podia desabar tudo e a gente entrar em estado de caos. Caos significa não saber o valor do dinheiro, saques e violência na rua, ou seja, cada um por si. Felizmente, não entramos. Então, nós estamos hoje construindo um mundo dentro de casa. E isso tem ganhos e perdas. Ao mesmo tempo que tudo cai, tudo nasce. Foi essa a surpresa. Agora, como essa máquina está funcionando? A gente ainda não tem noção. E isso é extremamente angustiante. Existe um estado de instabilidade econômica, que a gente não sabe quem vai pagar a conta. A gente já tinha uma crise econômica, com uma desigualdade social enorme e o ser humano em exaustão. Faz de novo, por favor, a pergunta.

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Como cada pessoa pode pensar no seu amanhã?
A primeira coisa que precisamos entender é que a pandemia suspendeu a máquina da civilização, uma máquina que organiza a nossa vida. Nos horários, nas ações, nas ordens. A primeira coisa que temos que lidar é com a indeterminação. Nós temos que aprender a lidar com o desconhecimento, aprender a agir mesmo sem a segurança que parecíamos ter.

De certa forma, isso já acontecia antes da pandemia, porque o fato de não sabermos se vamos acordar bem amanhã faz parte da condição humana...
Isso. A civilização se compôs como uma bolha em relação à vida e à natureza. E essa bolha te promete segurança se você tiver dinheiro. Essa é a hierarquia: ganhe dinheiro que a civilização te garante um bom médico, um bom psicólogo, uma boa casa de campo, primeira classe nos aviões. Então, a civilização não foi real, se compôs como uma bolha de ilusão. Felicidade, estabilidade. É isso que se promete aos que se destacam na sociedade. Na verdade, nunca tivemos isso, porque agora, com a pandemia, estamos vivendo o mundo real. A pandemia vai nos ensinar a lidar com a incerteza, a insegurança, o desconhecimento. A gente precisa se fortalecer, aprender a amadurecer em situações como essa. Estamos vivendo um processo de amadurecimento, com muito sofrimento, como, em geral, é o amadurecimento.

Recentemente, você defendeu que a pandemia trouxe a oportunidade de se construir uma nova humanidade, uma humanidade “pé-no-chão”. O que significa essa nova humanidade?
Eu tenho me dedicado a estudar e escrito muito sobre o processo de humanização da espécie, do ser humano. O ser humano é da natureza, é vida, não pode esquecer. O ser humano é o mais complexo que a vida produziu. Ele consegue não apenas viver, mas ter consciência de que vive. Então essa espécie que pensa, que produz conhecimento, que tem memória, construiu a cultura, que se chama civilização. Só que essa civilização não ajudou o ser humano a viver a vida. O ser humano foi se distanciando da natureza como se ele não fosse natureza nem vida. E hoje a própria natureza, porque é um vírus, nos submete. A civilização está parando porque um vírus, que faz parte dessa vida que a gente tenta esquecer, está dizendo: “Eu posso exterminar a sua espécie”. A civilização se tornou um incômodo para a vida. Ou aprendemos a viver a vida e negociar com ela, mas entendendo que nós somos submissos à exterioridade que se chama natureza e vida, ou seremos exterminados.

Essa afirmação casa com o que disse o médico e neurocientista Miguel Nicolelis: “A culpa é da nossa espécie porque, ao invadir hábitats e dizimar vidas animais selvagens, entramos em contato com esse tipo de vírus que, em teoria, não chegaria a nós”.
É literalmente isso. A humanidade, nas redes sociais, está precisando construir teorias da conspiração para justificar o caos que vivemos. O modo predatório como a espécie [humana] se relacionou com a natureza, o modo arrogante com que nos relacionamos com a natureza, incluindo a ciência, porque ela é feita por seres humanos, justifica o que está acontecendo. Não só na pandemia, mas no caos social, econômico e humano. O modo predatório como tratamos o corpo e o psiquismo, de modo invasivo, com alimentos destruidores… Isso é o que gera depressão, automutilação e a pandemia. A desigualdade social é o modo predatório como lidamos com o outro. O desrespeito que temos com o outro ser humano a ponto de submetermos pessoas a morarem no lixo. Temos que ter vergonha da trajetória humana no mundo. Vergonha, vergonha, vergonha. É o que eu sinto em relação não a toda a humanidade, mas ao caminho que a civilização tomou. A tecnologia pode ser a ponte para recompor essa relação destruidora. Podemos, em pouco tempo, beijar a terra e a natureza, abraçar a vida. Você muda um conceito, e a gente pode voltar, tendo uma relação maravilhosa com o mundo, onde a gente também vai consumir produto. As empresas vão vender, isso não vai mudar gravemente, não. Mas os produtos vão ter que devolver à terra amor, e não poluição. Tem como fazer isso usando a tecnologia.

De que forma?
Nós temos uma sociedade que se organiza em rede. Nós temos essas redes sociais já conhecidas, mas elas vão mudar. Temos que ter essa liberdade de criar outros formatos de relacionamento. Temos que entender que o que eu chamo é a possibilidade de todos conversarem com todos de modo livre. A internet abriu a possibilidade novos encontros. E isso é uma liberdade que nós não estamos usando. Nós temos que fazer micropolíticas. Encontros que criem afetos, amor, que estimulem vida, não a destruição e a morte. Antes da pandemia, no começo das redes sociais, elas deram vazão à frivolidade, à superficialidade, à mediocridade. Mas é compreensível. Sabe quando você vai a uma festa em que você vai com a melhor roupa e fica falando besteira? É mais ou menos a primeira fase da internet. Até que a festa acaba e você tem o mundo real, lavar a roupa, cuidar de filho. A segunda fase da internet é: temos abismos e temos que usar a rede para salvar nossa vida. Não só afetiva como profissional. Se vamos ficar tanto tempo em casa, nós temos que criar modos de ganhar dinheiro em casa. Precisamos sofisticar o uso da internet. Nós temos que usar a internet para lutar na guerra da informação e filtrar as fake news, ou nunca conseguiremos vacinar a população. Agora, imagina a tecnologia voltada para a recuperação do meio ambiente e a diminuição da desigualdade. A gente não precisa eliminar a compra e a venda, mas tem que entender que não podemos nos resumir a consumidores. Eu queria que a gente instalasse o “sinto, logo existo”, antes do “penso”, e aprender que o afeto é o que, de fato, importa. Trocar afeto, e não foto, roupa.

As restrições da pandemia vão nos tornar mais acostumados a uma vida com pouco toque?
Falando em previsão do mundo pós-pandemia, vamos universalizar o uso da rede [de internet], é o que temos, inclusive, para a venda e o consumo. Vamos sofisticar o uso da rede porque é por ela que vamos trocar alegria e afeto. E para manter a rede, vamos ter que lutar contra as fake news porque elas desvirtuam o ambiente virtual. Isso é o que eu acredito que podemos ter por um bom tempo, porque podem vir outras epidemias em função da relação predatória com o meio ambiente. As casas não podem mais ficar só para mostrar aos amigos, né? As casas realmente têm que ser confortáveis para quem vive. Isso torna a vida mais real, mais afetiva. Temos que nos acostumar com a falta de afeto? Não. Antes nós tínhamos a vida inteira lá fora, mas também não tínhamos afeto. Por termos liberdade lá fora, nós não valorizávamos o encontro, o abraço ou a presença. Nós estávamos com as cabeças, mas não aproveitávamos. Nós olhamos para o mundo virtual enquanto estávamos lá fora. Enquanto eu estava na praia, eu estava olhando o que as pessoas achavam de eu estar na praia. Nós vamos sair com tanto amor pela presença que o pouco tempo que tivermos fora vai ser acalorado, cheio de vida. Agora, podendo estar com as pessoas uma semana, um dia, nós vamos poder, de fato, olhá-las. Vamos sair daqui valorizando o abraço, o toque. Nós vamos valorizar a vida, e isso é o melhor ganho que devemos ter.

Hoje vivemos uma falta de coordenação para o combate à pandemia. O presidente defende a retomada do comércio e apenas o isolamento vertical, enquanto muitos estados e municípios adotam uma política mais restrita de isolamento. Esse cenário de desarticulação atrapalha a retomada? Como preparar as emoções e as ideias para essa realidade?
A pandemia é um divisor de águas, mas ela causa muito menos dor e ansiedade do que a situação política do Brasil. Nós poderíamos ter lidado com a pandemia como fez Portugal, o Uruguai, a Argentina. Não precisávamos ter 1.200 mortos em 24 horas. A pandemia não precisaria ser um caos no sistema de saúde. Estamos vivendo dois problemas graves, e o mais grave não é a pandemia, mas o modo como estamos lidando com ela. A situação política do Brasil é muito próxima do caos, e isso é apavorante para a sociedade brasileira. A relação que o governo [federal] tem com a pandemia é genocida. O governo estimula a morte porque estimula as pessoas a irem para a rua, dizendo para elas que quem morre é do grupo de risco. Há uma falta absoluta ou de conhecimento ou de ética ao dizer isso. Porque nós não temos grupo de risco. Temos uma incidência maior de idosos morrendo, mas pessoas jovens, crianças, adolescentes, morrem sem que a ciência explique por quê. Mesmo sem comorbidade. Nós temos um governo federal que estimula as pessoas a irem para a morte. Não precisávamos chegar a esse ponto. O mundo inteiro olha para o Brasil e diz: “Não é por aqui que devemos ir”. Nós somos o extremo do que deu errado na política. Isso é muito mais angustiante do que qualquer vírus. Eu não sei como me proteger nem como propor nada diante desse caos.

Isso também revela a necessidade de se repensar o modelo de Estado que nós temos?
Não só no Brasil, mas no mundo. O Estado não precisa ser enorme para dar conta do seu real papel. Ele tem que ser presente, especialmente para as classes mais desfavorecidas. Com as novas tecnologias, nós temos que reconstruir a ideia de Estado. Nós precisamos construir novas tecnologias de gestão pública, mais ágeis, mas que necessariamente marquem a presença do Estado. A pandemia prova que a ausência do Estado leva ao caos, que é o nosso caso. Nós estamos suplicando pela presença do Estado, da União nacional, que possa articular as ações.

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