Recusar a vacinação pode levar à demissão por justa causa? Saiba o que dizem os especialistas
Com o início da campanha de vacinação contra a Covid-19 em todo o Brasil e em meio a uma enxurrada de desinformação, negacionismo e opiniões conflitantes sobre as vacinas autorizadas no País, muitos ainda têm dúvidas sobre como empregadores e funcionários vão ser afetados em relação à obrigatoriedade da vacinação, referendada em dezembro de 2020 pelo Supremo Tribunal Federal em decisão que, no entanto, descartou a vacinação compulsória.
Ao determinar que a vacinação é obrigatória mas não compulsória, no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6.586 e 6.587 e do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) 1.267.879, o STF destacou que, apesar de obrigatória, a vacinação não pode ser compulsória, ou seja, ninguém será levado à força para vacinar-se contra sua vontade. A decisão respeitou as liberdades individuais garantidas nos direitos fundamentais da Constituição Federal. No entanto, explicam os juristas, nenhum direito é absoluto nem pode se sobrepor a outros direitos fundamentais, sobretudo os direitos coletivos, como é o direito à saúde.
Assim, quem se recusar a se vacinar poderá, sim, sofrer sanções. A Suprema Corte considerou que, nos locais em que forem implementadas as medidas tornando obrigatória a vacinação, poderia o empregador lá estabelecido exigir que o trabalhador se vacine e, em caso de recusa, puni-lo, inclusive com demissão por justa causa.
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"O empregador pode impor ao empregado a vacinação. O empregador tem o dever por zelar pelo ambiente do trabalho sadio. E agora que nós temos uma vacina aprovada pela Avisa, eu vejo que o empregador pode impor ao empregado a obrigatoriedade da vacinação desde que o empregado não apresente um motivo justificável", afirma o advogado trabalhista, professor da Universidade Mackenzie e pesquisador da USP Rafael Camargo Felisbino.
"As pessoas que escolherem por não receber a vacina estarão sujeitas a sanções previstas em lei, que podem ser multa, impedimento de frequentar certos lugares, dentre outros. Eu entendo que o empregador pode, sim, demitir por justa causa o trabalhador que se recusar a receber a vacina imunizante, inclusive se a empresa incluir em seus programas de controle médico de saúde ocupacional (PCMSO) a vacinação obrigatória", avalia o advogado trabalhista Rennan Galvão, membro da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/PE.
Um empregado pode ser demitido por justa causa, explica Rennan, se agir com insubordinação e se recusar, sem nenhuma razoabilidade, a utilizar o EPI, por exemplo. "A nossa Constituição impõe a esses empregadores a obrigação de garantir um ambiente de trabalho seguro e nada mais coerente que restringir o acesso a trabalhadores que se recusarem a tomar a vacina. Porém, a empresa deve prestar atenção nas gradações para chegar à ruptura do contrato de trabalho: é preciso que fique demonstrado que houve advertência escrita e reincidência contumaz antes de efetuar a demissão", ressalva o advogado.
Advertência antes da demissão
A rescisão por justa causa diante de uma primeira ou única negativa de utilização de máscara poderia ser considerada como uma penalidade muito severa. Há jurisprudência de decisão nesse sentido, em que o Tribunal Regional do Trabalho reverteu a decisão do juiz de primeira instância, que manteve a rescisão por justa causa de empregada que não utilizou a máscara, mesmo tendo a empresa fornecido o material gratuitamente e orientado a sua utilização. Nesse contexto, a aplicação de uma advertência escrita e, em caso de reincidência, a rescisão por justa causa, tende a ser mais assertiva.
Para além da decisão dos acordos coletivos, o especialista recomenda que empregadores não tomem a decisão de demitir o funcionário imediatamente, mas possa conversar sobre as punições caso ele decida não se imunizar. "Eu não recomendo a aplicação de uma justa causa na primeria recusa. Tem que haver uma ponderação onde o empregador primeiro tem que pedir ao empregado para tomar a vacina. Se ele insistir, aí sim ele pode tomar a decisão de demissão por justa causa com base no ato de indisciplina ou insurbordinação, previsto na CLT", destaca.
Constituição e Direitos Fundamentais
A Constituição Federal (CF) de 1998 não fala explicitamente sobre os imunizantes, apesar de existirem leis que versam sobre as vacinas. O texto fundamental aborda, no entanto, direitos que devem ser protegidos pelo Estado, como prevê o artigo sexto da CF que estabelece a saúde como um direito social. Já o artigo 196 também prevê explicitamente que a saúde é direito de todos e dever do Estado "garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".
Baseado nesses princípios da carta magna, um dos argumentos que tem se levantado é a liberdade individual da pessoa não querer se vacinar. Mas os especialistas consultados pela Folha de Pernambuco foram unânimes em afirmar que esse direito não pode se sobrepor à saúde pública.
"Nenhum direito é absoluto, sobretudo quando em conflito com outros de índole igualmente constitucional, quais sejam a privacidade e a liberdade, podendo ser tal garantia relativizada a partir do momento que põe em risco a saúde da coletividade", destaca Rennan, que enxerga a legalidade da obrigatoriedade caso seja uma recomendação das autoridades sanitárias, "sendo um direito não sujeito às convicções pessoais". "Não havendo razão plausível para se retardar a imunização e expor não só a pessoa a essa doença, mas, por efeito cascata, toda a sociedade, pode-se falar na relativização da alegada liberdade de não ser vacinado", conclui o advogado trabalhista.
Negociação coletiva
Para colocar em prática a obrigatoriedade da vacinação, empregadores e funcionários precisam sentar à mesa para dialogar e, nesse sentido, o papel dos sindicatos e das convenções coletivas será fundamental. "Penso que os sindicatos terão uma forte atuação nessa questão da vacinação. Os entes sindicais poderão estipular nas negociações coletivas a obrigatoriedade ou até a não obrigatoriedade da vacina. E, a partir disso, os empregadores estão 'brecados' ou autorizados. A Lei 13.467/2017, que regulou a Reforma Trabalhista, diz que as normas de negociação coletiva prevalescem sobre a Lei", lembra Rafael Filisbino.
Recursos às demissões
Para aqueles trabalhadores demitidos por justa causa em razão da recusa em se vacinar, restaria recorrer da decisão judicialmente. Alguns juristas argumentam que a Lei 9.029/95, que proíbe práticas discriminatórias nas relações de trabalho e veda “qualquer prática discriminatória” que limite o acesso ou a permanência no emprego", poderia ser evocada.
No entanto, Rennan Galvão acredita que o teor dessa Lei não seria capaz de reverter a demissão. "Entendo que o direito de ação é inerente a todas as pessoas e é assegurado ao trabalhador inconformado por uma eventual demissão por justa causa, mas creio que esta lei não se aplica ao caso. Explico: havendo a previsão formal e regular no Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO) da empresa a vacinação, estaríamos falando de insubordinação e não de discriminação", diz o advogado.
Empresas não podem vacinar
A campanha de vacinação iniciada no Brasil não prevê vacinação realizada por empresas, que ficam liberadas apenas para promover campanhas de conscientização. Já a aplicação da vacina está sendo executada pelo Ministério da Saúde através do Programa Nacional de Imunização (PNI), com participação de Estados e municípios.