Redes sociais podem impactar na qualidade de vida de quem passa por transtorno emocional
Experiências irreais e "venda" de estilos de vida, comuns em sites e aplicativos como Facebook, Twitter e Instagram, podem gerar angústia. Segunda matéria de série sobre o Setembro Amarelo traz falas de especialistas e usuários sobre o assunto
Das esferas que envolvem o bem-estar de uma pessoa, a saúde mental é, provavelmente, a mais afetada pelo contexto social em que ela vive. Muito do que se entende como essencial para se manter um corpo saudável está associado aos desafios que se colocam no dia a dia – e também à maneira como se reage a eles. Assim, num mundo marcado pela troca constante de informações, onde setores inteiros de negócios se estruturam nos meios digitais, não se deve desprezar o impacto das interações lançadas em sites e aplicativos como Instagram, Twitter e Facebook sobre a qualidade de vida de quem passa por qualquer situação de transtorno emocional. No entanto, tudo depende de como essas ferramentas são utilizadas.
Na literatura científica, já há estudos que relacionam o uso ilimitado das redes sociais à deterioração da saúde mental, indicando, até, o agravamento de sintomas de depressão e ansiedade. Uma pesquisa da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, publicada em novembro do ano passado na revista Journal of Social and Clinical Psychology, analisou o comportamento de 143 estudantes de 18 a 22 anos no Facebook, no Instagram e no Snapchat e constatou uma redução nos níveis de depressão e solidão entre os alunos que limitaram, por três semanas, o uso dessas plataformas. A partir do resultado, os autores do estudo sugerem que restringir o tempo nesses sites a aproximadamente 30 minutos por dia pode trazer melhorias significativas para a sensação de bem-estar.
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No Brasil, ainda não há muitas pesquisas sobre redes sociais no campo da psicologia, mas recentemente tiveram destaque nas mídias casos de celebridades, como o padre Fábio de Melo e Whindersson Nunes, que têm forte presença na internet e, diagnosticados com depressão, passaram um tempo afastados da interação virtual. Para quem não é famoso, uma das razões que provocam desgastes emocionais é a percepção distorcida da realidade, retratada em imagens e filtros que, ao ressaltarem sempre o lado positivo da vida, podem provocar angústia em quem não vive nesses padrões.
“Todos nós somos exibicionistas por natureza. Eu quero ser visto para que o outro me veja e reconheça como estou bem. Isso, em essência, não é ruim, é cultural. Mas, quando milhões de pessoas postam milhões de imagens todos os dias e nem sempre essas imagens são honestas, o que eu gero é um engano não só de mim mesmo como no outro, que vê aquilo, acha que é real e passa a sentir-se mal consigo mesmo”, explica a professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Carolina Dantas.
Para quem sofre com transtornos como ansiedade e depressão, os efeitos desse contraste entre o real e a exposição virtual podem ser danosos. A neurocientista e professora do Departamento de Psicologia da UFPE, Aline Lacerda, ressalta, porém, que as doenças mentais surgem de fatores diversos, influenciados por questões genéticas, psicológicas e até ambientais, e, por isso, não se pode afirmar que as redes sociais sejam uma causa, mas sim um elemento capaz de gerar desconforto.
“Não existe relação de causa e efeito, mas isso pode ocorrer. Nas redes sociais, o que mais se vê são viagens, produtos sendo vendidos e os influenciadores, que são uma nova profissão. Abrem empresas para vender produtos, colocar vidas alegres e fotos de corpos perfeitos. E isso pode aumentar o nível de estresse, isolamento social, embotamento afetivo (quando se tem dificuldade de expressar emoções e sentimentos)”, afirma. “É um fenômeno mundial, mas cada cultura tem sua particularidade e tem que ter mais estudos sobre isso no Brasil”.
Quebrando padrões
Independentemente das dificuldades enfrentadas no dia a dia, com ou sem diagnóstico para algum transtorno psíquico, todo mundo é impactado pelo bombardeio de estímulos que se veem nas telas do celular e do computador. Para reduzir esse impacto, não há uma receita pronta para todos. A professora Carolina Dantas sugere, além de diminuir a exposição nas redes, identificar os conteúdos potencialmente tóxicos, que variam para cada pessoa.
“Se a gente propuser diferentes formas de usabilidade, gere melhor essa questão da saúde mental, se desconectando um pouco. Mas não é deixar de usar. Todo mundo pode curtir, se divertir, mas se desconectando do que lhe faz mal. Por exemplo, eu sou mãe de uma criança de 3 anos e me faz mal ver padrões de maternidade irrealizáveis. Vi que aquilo não fazia sentido para mim e me distanciei”, conta. “Ou você ver postagens sobre ‘casal raiz’ e você nem namorado tem. Ou pode não ser legal para você ver todo dia as fotos do ex-namorado ou ex-namorada”.
Isso não significa, porém, que os usuários devem parar de compartilhar momentos felizes. A pesquisadora Aline Lacerda destaca a importância de se mudar a perspectiva sobre os aspectos negativos da vida. “Claro que eu não preciso postar meus momentos de tristeza. Existe uma cultura de desmerecer essas emoções de valência negativa, como se fosse ruim vivê-las. É bom você estar com raiva e viver um pouco essa raiva, saber o que está sentindo, pensar por que está tendo essa raiva. Essas emoções negativas nos fazem refletir também”, pondera.
Outro ponto importante é entender que as postagens são apenas uma parte da vida que o usuário quer expor. “Mesmo que seja real, é uma parcela que a pessoa se propõe a expor de acordo com os desejos dela”, avalia a professora.
Detox digital
Passar um tempo sem entrar nas redes sociais para evitar os impactos da superexposição e da idealização da felicidade - prática conhecida como detox digital - não é só uma medida tomada por quem se sente viciado na hiperconectividade, mas também pode ajudar quem tem que lidar com a depressão e a ansiedade. Foi o caso do jornalista Elton Ramon, 27.
Em 2016, dois anos antes de receber o diagnóstico que confirmava os transtornos que já sofria, chegou a passar duas semanas com as contas do Facebook, Instagram e Twitter suspensas. “Eu me sentia bastante desconfortável. Via as pessoas sempre de bem com a vida, viajando, e eu não estava naquele momento. Não me sentia representado daquela forma”, conta.
Além da comparação com a vida projetada pelos outros usuários, a circulação incessante de notícias sobre a situação política do País e do mundo o afetava. “Ficava bastante amargurado, para baixo, e não conseguia me afastar daquilo. Então, baixei filmes, séries para ocupar meu tempo durante esse período”, diz. Depois disso, Elton pôde se perceber melhor e, enquanto fazia o trabalho de conclusão de curso, que resultou num site sobre depressão e saúde mental, identificou em si mesmo os sintomas da doença.
“Estava com a autoestima mais baixa do que sempre foi e o humor irritadiço. Também tive um relacionamento que não foi muito bom, o que serviu de gatilho para eu perceber que precisava procurar ajuda”, relata. Ele também tinha falta de sono e um problema de pele, que, agravado pela ansiedade, coçava e criava bolhas.
A partir daí, procurou psiquiatra e une o tratamento médico com terapia. Nunca mais deixou de usar as redes sociais, embora hoje num ritmo menor. “Um truque que eu peguei na época do TCC e uso até hoje é passar uma hora antes de dormir sem acessar. Também reduzi as horas nas redes”, afirma. A mãe dele, Risolene Oliveira, 51, procura dar todo o apoio de que o filho precisa. “Antes, quando tinha falta de ar, botava ele num lugar bem ventilado, longe de qualquer barulho. Depois que ele começou a ir para a academia e o psicólogo, melhorou muito”, comenta.
Redes sociais como espaço para informação
Ao observar a reação das pessoas que não conheciam o transtorno com o qual foi diagnosticada aos 16 anos, Manuela Távora, 23, sentiu a necessidade de disseminar informação. “Olhavam para mim de um jeito meio estranho, às vezes riam, porque não entendiam”, revela. Assim, há três meses, a estudante de ciências contábeis, que concluiu recentemente o curso de administração, mantém no Instagram a página Tiquetoc, dedicada à Síndrome de Tourette.
A doença é um distúrbio neuropsiquiátrico que se caracteriza por tiques motores ou vocais, incluindo movimentos como balançar a perna sem parar até gritar palavrões e xingamentos de forma involuntária. “Você não controla isso e a ansiedade piora muito. Também pode estar associada a pensamentos negativos e TOCs (transtorno obsessivo-compulsivo), com ações que ficam se repetindo”, explica a jovem. Os sintomas variam em cada paciente. No caso dela, os tiques envolvem piscar o olho e mexer o nariz. “Já tive crise de passar uma hora direto. Uma vez, num avião, um homem começou a me imitar rindo”, relata.
Hoje, seguindo tratamento com remédios prescritos pelo psiquiatra, psicanálise e terapia cognitiva-comportamental, Manuela defende que transmitir informação é fundamental para mudar a visão social sobre a síndrome. “Eu falo com muita gente, troco experiências. Psicólogos, pais, mães já vieram me procurar para falar sobre o assunto. Consegui o meu objetivo”, celebra.
“A rede social é uma ferramenta de comunicação e também ajuda ela [Manuela] a pensar mais sobre a condição dela e lidar melhor. Só devemos ter cuidado porque nem todo mundo que tem a síndrome de Tourette da mesma forma, o que é muito importante quando se fala de saúde mental”, lembra a neurocientista Aline Lacerda.