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OPINIÃO

Segue a Marcha Fúnebre das Grandes Referências Culturais

Uma triste marcha fúnebre tem-se repetido no ambiente cultural brasileiro. Tem sido tempos de saudosismo e réquiens necessários, embora me sinta nessa loucura que assola no mundo de hoje, bem "mais angustiado que os goleiros na hora do gol", conforme poetizou e cantou o genial e sensitivo Belchior.

Nesse contexto geral de orfandade, que tanto tem afetado a cultura brasileira, sinto-me mais preso a essa situação - que chega até ao lado do psicológico - porque não percebo uma renovação de quadros, que possa exercer a dificil missão de uma mera substituição. Talvez meu etarismo exacerbado esteja rigoroso com o poder natural que advém de uma juventude responsável. Mas, confesso que lá no fundo d'alma, não consigo exteriorizar algo que se revele para melhor. Como diria o mesmo Belchior: "que apesar do novo sempre vir, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais".

Enfim, expressar-se assim, de forma tão melancólica parece virar rotina. Faz parte da lógica da vida um envelhecimento que caminha sobre a sombra das mortes, independente das formas que elas alcancem. Dessa vez, o "artista encaminhado" para outras dimensões foi ninguém menos que José Celso Martinez Corrêa. Um dos maiores ícones da dramaturgia brasileira.

Pois é, penso que sou daqueles seres mais discretos do chamado ativismo cultural, mas que na hora de exercê-lo em nome das grandes causas, o compromisso de uma eventual omissão não chega nem por perto da minha memória. Afinal, Zé Celso sempre representou para mim o teatro vivo, feito às claras, sem arrodeios. Seus 65 anos de condução do Teatro Oficina em São Paulo é bem isso. Um diretor artístico de um teatro aberto, estilo instigante e revolucionário, que foi capaz de por a cara da sua amada São Paulo (embora nascido em Araraquara) numa outra linha de evidência. Ou seja, no campo dos que fogem de marcas tidas como conservadoras ou contrárias as estéticas revolucionárias. A polêmica que decorre de tais incômodos da liberdade artística de se expressar, fez de Zé Celso um referencial cultural. Que chegou a ir além do teatro. Que também foi além da sua trincheira do Oficina e da cidade de São Paulo.

Nessas horas de perdas culturais expressivas e quase únicas, meu sentimento tão particular de orfandade se impõe mais forte. Por maior ou menor que seja a impressão da arte que esse autor nos deixa de herança, penso que  a parte que não lhe admira por qualquer razão, precisaria se ater, pel9 menos, no seu valor como ícone cultural. Vivemos tempos tão sombrios no cômputo geral, que as causas que referenciam a grandeza artística-cultural parece se perder nesse vazio. Da pandemia para cá, muitas das perdas consumadas no meio da cultura não tiveram o devido destaque. Foram ignoradas no bojo de uma situação crítica, que ajudou a fortalecer ideias e sentimentos de ódios contra os artistas e aqueles demais, que fazem a diversidade da nossa cultura um referencial diferenciado.

Que através desse desaparecimento inesperado, do lúcido e operante Zé Celso, na forma modesta de uma justa homenagem, eu possa ativar meu comoromisso, ainda mais fortalecido, no respeito indelével para quem vive da arte e pela arte. Em nome dos que ainda resistem e sobrevivem dessa labuta honrosa. Ou ainda, daqueles que, mesmo na certeza e na leveza das suas contribuições para o setor, partiram sem o gosto de um prestígio maior devido por grande parte da nossa sociedade.

Minha intenção é fazer desse momento triste com a morte de Zé Celso, um breve apelo que se apoia na reconquista de um sentimento perdido. O de trazer de volta o quanto a arte e a cultura fazem pela construção de uma identidade soberanamente brasileira.

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(*) É economista, empreendedor cultural e colunista desta Folha de PE

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