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Tradições natalinas com a cara do Nordeste

A tradição natalina se renova a cada ano nas casas e corações brasileiros. No entanto, costumes da época exclusivos do Nordeste lutam para não cair no esquecimento

Antônia Batista Ferreira, fundadora do Pastoril e do Guerreiro Sol NascenteAntônia Batista Ferreira, fundadora do Pastoril e do Guerreiro Sol Nascente - Foto: Ed Machado/Folha de Pernambuco

Muitos esquecem ou simplesmente desconhecem que antes do Papai Noel, da árvore de Natal e da falsa neve neste calor tropical, o Nordeste brasileiro possui belas e importantes manifestações natalinas. Entre os citados por estudiosos do assunto estão pastoril, reisado, guerreiro, cavalo marinho, além do fandango e do boi.

Transmitidos, sobretudo, pela tradição oral, esses costumes vêm sendo abandonados por boa parte da população, sobretudo os mais jovens, que diante de um mundo globalizado e de uma enxurrada de informações recebidas pelas redes sociais acabam absorvendo culturas externas e desprezando o que faz parte de suas origens.

Composto pela mistura de dança, teatro e música, o Pastoril inicialmente representava apenas o nascimento de Jesus, mas com o passar do tempo se dividiu em duas linhas: a religiosa e a profana. Na apresentação não pode faltar o Cordão Encarnado e o Cordão Azul, além, da Estrela guia, a Borboleta, a Cigana e o Anjo que faz a anunciação do menino Jesus. "É uma celebração que acontece na frente do presépio. É um auto dramático que envolve o embate entre o bem e o mal", explica a especialista em cultura popular Carmem Lélis. Em Pernambuco, a introdução do folguedo aconteceu em meados do século 16, no Convento dos Franciscanos de Olinda.

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Outra importante tradição desta época é o Reisado, grupos que cantam e dançam na véspera e Dia de Reis. Em artigo publicado no site da Fundaj, Lúcia Gaspar explica que o folguedo é formado por um grupo de músicos, cantores e dançarinos. Eles percorrem a cidade anunciando o nascimento do Messias, além de fazer louvações aos donos das casas por onde passam. Entre os instrumentos utilizados por eles estão a sanfona, o tambor, a zabumba e a viola. Tem como personagens principais o Mestre, o Rei e a Rainha, o Contramestre, os Mateus, a Catirina, figuras e moleques.

Segundo a historiadora e pesquisadora Carmem Lélis, especialista em cultura popular, além de serem religiosas e vinculadas ao cristianismo, essas manifestações foram herdadas dos europeus, sobretudo da península Ibérica (Espanha e Portugal), principalmente na época da colonização. "Logicamente, aqui no nosso País sofrem uma influência na musicalidade e na forma de apresentar dos povos que vão formar a sociedade e o povo brasileiro, como indígena e afrobrasileiro", comenta.

Com maior riqueza nos trajes e enfeites e maior beleza nas músicas, o Guerreiro é um grupo de dançadores e cantadores semelhante ao reisado. Rico em cores e enredo, o folguedo possui vários personagens, como rei, rainha e mestre. As vestimentas são multicoloridas, imitação dos antigos trajes nobres, usando fitas, espelhos e enfeites de árvore de natal nos chapéus, que aparecem em forma de igrejas, palácios e catedrais. Variação do bumba-meu-boi, o cavalo-marinho é típico da região da Zona da Mata. Homenageando os três Reis Magos, as apresentações contam com música, teatro, coreografias e falas improvisadas.

Quem vivenciou tais manifestações na infância se sente na responsabilidade de mantê-las vivas, como é o caso da educadora e professora aposentada, Antônia Batista Ferreira, 69 anos. Junto com o marido, ela é uma das fundadoras do Pastoril e do Guerreiro Sol Nascente, no bairro de Água Fria, Zona Norte do Recife. Quem chega na frente da residência dela logo percebe que se trata de um lugar especial, onde se guarda não apenas objetos representativos da cultura nordestina, mas memórias da cultura de um povo. Ao entrar no terraço da casa um grande e enfeitado presépio lhe recepciona. A impressão é que a colocação de cada peça foi extremamente pensada para garantir a harmonização do todo.

Antônia conta que a preparação para o pastoril e o guerreiro começa no mês de novembro. "Tiramos as roupas dos baús. Começamos a limpar. É quando também intensificamos os ensaios", comenta. Ela conta que as mais belas recordações que tem do folguedo são da época de sua infância. "Sempre foi uma festa bonita, colorida. Todo mundo se reunia para ver. É triste ver que aos poucos essa tradição vem se perdendo", comenta. Para a educadora, o avanço tecnológico e a internet são alguns dos responsáveis pela falta de interesse. "Mas falta também ensinamento nas escolas, onde deveriam despertar o respeito e interesse pelas manifestações culturais do País."

Mudança cultural

Para a especialista em cultura popular Carmem Lélis existe um processo de atualização e contexto mundial que devem ser levados em consideração. "Quando essas manifestações eram muito conhecidas era um momento que nem a televisão existia como recurso de diversão. As pessoas iam para rua assistir espetáculos gratuitos de fazer rir ou de fazer chorar. Era um tipo de espetáculo que surtia um efeito de sociabilização muito grande. Depois da televisão e outros meios de comunicação esse tipo de programação vai cair um pouco", conta. Por isso, a estudiosa defende que é preciso haver um estímulo a partir das comunidades que promove os folguedos, além de incentivo e divulgação por parte do poder público.

Carmem Lélis não acredita que outros símbolos, como o Papai Noel, minaram as manifestações nordestinas. "Vamos receber como influência direta do próprio capitalismo, do consumo, comercialização, mas esse movimento não implica, não determina o fim do nosso movimento interno", comenta. Ela argumenta que os elementos externos e os da nossa região possuem propostas diferentes. "Enquanto outros elementos estão diretamente ligados ao consumo, o tipo de manifestação que a gente desenvolve seria uma terceira situação, ligada a diversão e religião", diz.

Para o professor de educação física e especialista em dança Tiago Batista Ferreira, 41, manter essa tradição é uma questão de resistência. Ele afirma que ao viajar para outros países para divulgar os folguedos nordestinos percebe um interesse maior do que dos próprios brasileiros. "Esse preconceito já vem por ser uma cultura que em sua grande maioria no nosso Estado é de origem negra, afrobrasileira. Com esse processo de discriminação as crianças vão se afastando. A gente sabe também que algumas religiões agem com preconceito e tentam tirar das pessoas o contato com esse trabalho. Aqui a gente não fala de religião, fala de cultura. E cultura é essencial para você saber se portar."

Na avaliação da antropóloga Zuleica Dantas, em muitas regiões as manifestações e tradições são preservadas, mas o Brasil passa por uma fase contrária. " Essas manifestações vieram aos poucos sendo deixadas de lado com o próprio progresso da indústria cultural. Porém, quanto mais o povo se aliena e busca uma cultura externa, mais ele vai perdendo as suas tradições locais. Quanto menos entendimento ele tem, quanto menor a sua educação formal e o seu sentimento identitário mais ele vai perdendo a valorização das suas origens", disse a professora de antropologia da religião e coordenadora da Pós-graduação de Ciências da Religião da Unicap.

Zuleica Dantas reforça a ideia de que as escolas devem ser responsáveis por valorizar e ajudar a transmitir a existência das manifestações locais. "Essas manifestações fazem parte da nossa identidade cultural. É aquilo que nos faz sermos quem nós somos e nos diferenciarmos dos outros. Nos tirando isso a gente desidentifica e se transforma no grande produto globalizante sem identidade", ressalta.

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