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Um novo significado em debate para o Bairro do Recife

Com a pandemia do novo coronavírus, o cenário histórico da capital pernambucana passou por um esvaziamento. Soluções para revitalizar o local estão sendo planejadas

Bairro do Recife, região central da Capital pernambucanaBairro do Recife, região central da Capital pernambucana - Foto: Alexandre Aroeira/Folha de Pernambuco

Há quase duas décadas, dona Maria Barbosa da Silva, 46 anos, vende tapioca no Bairro do Recife, no Centro da cidade. A ideia surgiu durante um Carnaval em meados dos anos 2000 de forma despretensiosa e desde então ela não parou mais. Foi com a comercialização dessa comida amada por muitos nordestinos que ela criou as quatro filhas. No entanto, o que sempre lhe causou alegria e satisfação, no último ano se tornou motivo de preocupação. Com o avanço da pandemia do coronavírus, dona Maria viu seus clientes sumirem. Se antes ela chegava a vender de 100 a 130 tapiocas em um só dia, atualmente, há dias que esse número não chega a 20.

Apesar das dificuldades, ela conta que nunca pensou em abandonar seu ofício. "O que me motiva a continuar é o amor ao meu trabalho e aos clientes. Sei que independente da quantidade, sempre vai ter alguém contando comigo para fazer uma refeição", comenta. Moradora da comunidade do Pilar, a tapioqueira começou a vender na porta de casa outras mercadorias, como milho cozido, para complementar a renda. "O segredo é não desistir. Sempre acredito no amanhã e tenho esperança que tudo vai se resolver", fala com o sorriso no rosto de quem tem a certeza que vai vencer mais um desafio.
 

Em meios a tantos percalços e incertezas, o presidente da Associação Comercial de Pernambuco (ACP), Tiago Carneiro, aposta em um projeto de ressignificação do Recife Antigo para mudar a realidade da região e de quem depende dela para sobreviver. Aumento da população residente, ampliação e dinamização dos usos existentes e adoção de conceitos urbanos sustentáveis devem servir de suporte para dar um novo sentido ao bairro. Entre os objetivos do projeto está a criação de uma intervenção inclusiva com oportunidades para todos os grupos socioeconômicos, atração de uma ampla gama de faixas etárias e estilos de vida para o coração da cidade, além do resgate do patrimônio histórico e aumento de áreas verdes.

Tiago Carneiro explica que a ideia é fazer uma espécie de hackathon, ou seja, um evento no qual os participantes poderão debater, criar e apresentar soluções específicas para um ou vários desafios. "Vai ser um chamamento público. A ideia é que a gente lance o edital informando quais as condições mínimas de cada projeto e a gente vai abrir o edital. A intenção é abrir para o maior número de participantes possível e trazer empresas do Brasil todo, quem sabe até de outros países, com soluções novas ou testadas em outros lugares, que possam ser usadas no Bairro do Recife. É preciso ter uma diversidade de soluções porque existe uma diversidade de problemas", explica.

O presidente da ACP ressalta que também seria interessante haver incentivos fiscais para que empresas dos mais diversos segmentos pudessem se instalar na região. "A gente não quer isenção, mas um incentivo que valha a pena um empreendedor sair de outras áreas da cidade, como a zona norte ou sul, e vir para o Bairro do Recife", acrescenta. Tiago Carneiro afirma que é preciso enxergar o Bairro do Recife como um grande empreendimento a céu aberto. "A pandemia acelerou o processo de desocupação do bairro. Muitas empresas passaram a fazer o trabalho remoto. A gente vê que outros locais sofreram, mas contaram com ações coordenadas estratégicas e estão conseguindo superar esse período de forma menos traumática", comenta.

Presidente da Associação Comercial de Pernambuco, Tiago CarneiroPresidente da Associação Comercial de Pernambuco (ACP), Tiago Carneiro

Inovação pode fazer a diferença

Assim como os comerciantes informais, donos de empreendimentos mais estruturados também sofreram as consequências da crise sanitária. De acordo com a Associação Comercial de Pernambuco (ACP), antes da pandemia o Bairro do Recife contava com mais de 140 estabelecimentos em funcionamento. Hoje em dia são cerca de 40. Indo na contramão da onda de fechamentos, há cerca de dois meses o empresário Vernier Cortez, 30, abriu a Meat Me Burguer N' Beer, no vão do Museu Cais do Sertão. A vista para o mar e o Parque das Esculturas dão um charme especial ao local. Vernier afirma que o negócio começou a ser planejado antes da pandemia. 

"O que faz a gente manter e acreditar no projeto é por ele ser totalmente inovador. Por ter nascido na pandemia, ele foi todo planejado para esta nova realidade. As mobílias contam com bastante espaço entre elas, nosso ambiente é 100% aberto, não tem ar-condicionado, não tem portas. Isso faz com que as pessoas acreditem na nossa proposta e se sintam mais à vontade para frequentar o espaço", explica. Vernier afirma que vem trabalhando para não ter prejuízo e conta com o dia no qual tudo poderá funcionar como antes, mas por enquanto vai usando a criatividade para atrair clientes. "Constantemente procuramos ter novas ideias para trazer um fluxo a mais de pessoas do que o normal", diz.

Segundo o presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes em Pernambuco (Abrasel-PE), André Araújo, os estabelecimentos precisam se inovar do ponto de vista dos serviços, aprimorando por exemplo o delivery para poder se adaptar aos novos tempos e sobreviver a esta nova era. "Estamos em um processo de vacinação que já começou a ter seus resultados, pois temos visto uma queda no número de idosos que não precisam de enfermarias e hospitais. Então, estamos apontando para os caminhos da normalidade e os planos devem ser feitos a partir de agora. Não podemos perder tempo. Assim, quando o planejamento estiver concluído espero que já possamos partir para a execução", disse.

Empresário Vernier CortezVernier Cortes está à frente da Meat Me Burguer N' Beer

Vocação a ser revista

Juntamente com Boa Vista, Santo Antônio e São José, o Bairro do Recife integra o sítio histórico da Capital pernambucana. Conhecido por seus carnavais e prédios antigos, o local foi o núcleo inicial da ocupação da cidade e passou inúmeras mudanças desde o seu surgimento. A partir de sucessivos aterros, assumiu a configuração atual de ilha, integrando-se à cidade por meio de quatro pontes. Mas as modificações não foram apenas físicas. 

Por volta de 1548 era apenas um começo de povoado, formado por pescadores ou pessoas ligadas ao mar, que servia de porto para a cidade de Olinda. "Na segunda metade do século 20 ele perde a hegemonia territorial para os bairros de São José e Santo Antônio. Passou por um período de grande decadência e na década de 1980 promoveu-se um trabalho de revitalização do bairro que culminou com a instalação do Porto Digital nos anos 2000", explica o consultor da TGI, Francisco Cunha.

O especialista afirma que apesar de a utilização do bairro ser predominantemente comercial, atualmente, existe o dilema de serem pensados outros perfis para ele. De acordo com Francisco Cunha, é preciso ser revista a vocação do local, levando em consideração o incentivo à moradia e ainda mais ao turismo por se tratar de um local histórico. "Mas precisa ser tratado de forma integrada, articulada e pensando no médio e longo prazo, envolvendo todos os atores, entre eles o poder público, Porto Digital, os setores de economia criativa, informal", enumera.

Francisco Cunha ressalta que as decisões devem ser feitas do ponto de vista mais técnico e científico. "As cidades consideradas desenvolvidas são planejadas para décadas e não para uma gestão. No musical Saltimbancos, que Chico Buarque traduziu, ele diz que a cidade ideal para o cachorro tem um poste por metro quadrado e para a galinha tem a rua cheia de minhoca. Ou seja, para você a cidade ideal é uma e para mim é outra. É isso que a gente precisa? Não. A gente precisa de uma cidade que seja boa para todos nós", explica.

Maria Barbosa da Silva vende tapioca no Bairro do Recife há quase 20 anosMaria Barbosa da Silva vende tapioca no Bairro do Recife há quase vinte anos



Revitalização na mira 

Considerado um dos principais parques tecnológicos e ambientes de inovação do Brasil, o Porto Digital é um dos representantes da nova economia de Pernambuco e responsável por moldar o perfil tecnológico do Bairro do Recife. Atualmente, o Porto Digital abriga mais de 300 empresas, organizações de fomento e órgãos de Governo e aproximadamente 13,3 mil trabalhadores. Em 2019, ele teve um faturamento de mais de R$ 2 bilhões. 

Segundo o presidente do Porto Digital, Pierre Lucena, devido a pandemia mais de 70% dos colaboradores do parque tecnológico estão trabalhando remotamente, causando um esvaziamento no Bairro do Recife. Porém, ele afirma que se trata de algo temporário e a tendência é que boa parte volte para as atividades presenciais. "Porque há uma perda de qualidade da cultura organizacional e o turnover (taxa de rotatividade de funcionários) das empresas vai lá para cima. Isso é uma realidade nacional. Havia empresas que tinham 5% de turnover e passaram a ter 20%, 25%", comenta. 

Com a perspectiva de estimular e promover o crescimento do setor de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) e Economia Criativa (EC) na região do Porto Digital, a Prefeitura oferece o benefício de incentivo fiscal no Imposto Sobre Serviço (ISS), que cai de 5% para 2%, por meio de uma lei municipal de 2006. Lucena informou que o Porto Digital vai abrir negociação com a Prefeitura do Recife para fazer uma reforma no Bairro do Recife, citando o embutimento de fios como um dos projetos a serem tocados. "Há uma série de iniciativas que a gestão municipal precisa fazer para tornar a região melhor. Vamos precisar que o poder público chegue junto para dar uma reorganizada no bairro", disse.

O incentivo a moradias também está na mira do Porto Digital, mas de acordo com o presidente do parque tecnológico se trata de ações pontuais. "Não é algo fácil de ser feito. É possível com projetos específicos, mas não em larga escala. O Bairro do Recife por ser histórico, tombado pelo Iphan, fica muito caro para se investir em residência. Para se ter ideia, dependendo do prédio o valor pode chegar a mais de R$ 10 milhões e hoje em dia ninguém está disposto a fazer um investimento tão alto", acrescenta.

Foco na habitação

De acordo com a secretária-executiva de Desenvolvimento e Inovação da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Recife, Gelisa Bosi, a Prefeitura sempre teve a preocupação de levar vida ao Bairro do Recife. Ela informou que um dos focos da atual gestão é atrair empreendimentos não apenas comerciais mas também com foco na habitação. Como exemplo a secretária citou o Moinho Recife Business & Life, empreendimento multiuso que vai abrigar espaços corporativos, apartamentos residenciais, hotel, mall com até 14 lojas, rooftop com praça elevada, mirante e telhado verde, além de um estacionamento com 595 vagas rotativas.

A secretária também destacou o projeto de embutimento de fios e cabos de telecomunicação, em parceria com a Celpe, e uma série de transformações no espaço urbano, como o alargamento de 25% da área de calçadas, proposta de implementação de quatro quilômetros de malha cicloviária e a pedestrianização de algumas vias, como aconteceu com a rua do Bom Jesus. "Já temos quase R$ 150 milhões garantidos da própria Celpe. Falta finalizar o projeto e esperamos no final deste ano conseguir fazer a licitação", disse. Outra iniciativa da Prefeitura é o de arrecadação de imóveis urbanos em estado de abandono. "Queremos fazer com que as ruas sejam laboratórios a céu aberto e que o Bairro do Recife tenha um mix de características", afirmou Gelisa Bosi.

Sobre a intenção da Associação Comercial de Pernambuco de fazer um hackathon, a secretária-executiva destacou que a Prefeitura está sempre aberta a propostas. Focando na economia, a Prefeitura lançou recentemente o Crédito Popular, programa de estímulo à geração de emprego e renda. Para 2021, a previsão é que o município desembolse R$ 16 milhões na concessão dos empréstimos, sendo concedidos créditos de até R$ 3 mil a cerca de 10 mil empreendedores individuais, formais ou informais, microempresas, empresas de pequeno porte e organizações econômicas de caráter coletivo e solidário, dando prioridade a jovens, mulheres, pessoas negras e pessoas com deficiência. "Até agora já atendemos 175 pessoas, somando R$ 300,9 mil".

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